15 abril 2013

Adaptando Lewis Carroll

Miguel no
País das Patetices


Eu sei que os velhos como eu sofrem de uma malfadada pulsão para acharem que nunca há nada de novo debaixo do Sol mas, apesar deste relâmpago de lucidez e autocrítica, não posso deixar de confessar que se há coisa que me irrita e desespera é o constante regresso de opiniões, teses e apreciações velhas de 10, 20 ou 30 anos e que, sem contradita razoável ou fundamentada, já foram desmascaradas e espatifadas inúmeras vezes.

É o que volto a sentir quando, na página 5 do último Expresso, leio na primeira parte de um artigo de opinião coisas com estas (sublinhados meus):

«Não gosto da minha Constituição. Tenho pena de o dizer porque acho que a Constituição como o hino e a bandeira, é uma marca identitária da nação, o seu BI, na qual todos, absolutamente todos, se deveriam poder rever. Gostaria que os constituintes de 1976 nos  tivessem dado uma Constituição que, por tão simples, evidente e consensual, fossemos capazes de recitar de cor,  tal como a letra do hino. Mas como se pode recitar de cor uma Constituição que tem 294 artigos [por acaso tem 296], mais a sua divisão em números e alíneas, e nos foi orgulhosamente [???] apresentada como a segunda maior do mundo à época, só suplantada pela da ex-Jugoslávia ?.  Infelizmente os símbolos da Nação foram capturados e impostos pelo mau gosto tribunício da Primeira República. A bandeira é a mais feia do mundo; o hino é ridículo e patético e a Constituição, filha dos filhos da Primeira República é um texto irresponsável e abusivo. É irresponsável porque desresponsabiliza uma nação inteira: há, na Constituição 95 artigos que garantem toda a espécie de direitos  a todos (a sua frase mais comum é «todos tem direito a» mas não há um só artigo que estabeleça um dever dos cidadãos». É abusiva porque é uma Constituição unilateral, ideológica e politicamente balizada. (...) Não venham pois apresentar a Constituição como um boi ápis sagrado, porque a única coisa sagrada é a liberdade e a democracia - e isso caberia em cinco artigos de uma Constituição verdadeiramente democrática, que esta não é.(...)»

Quem assim escreve, no ano da graça de 2013, é nem mais nem menos Miguel Sousa Tavares (confesso que uma espécie de meu velho «inimigo (aqui carradas de aspas) de estimação  » e espero que ele assim também retribua), licenciado em Direito, jornalista, escritor e comentador que, por ironia retroactiva da história, se deve ter estreado, para aí aos 20 anos, na tomada de posições políticas públicas ao apôr a sua assinatura na primeira folha de um abaixo-assinado de solidariedade com os participantes na vigília da Capela do Rato (1972), assinatura essa que tinha a companhia muito próxima de uma data de comunistas, entre os quais Carlos Carvalhas, Sérgio Ribeiro, Lino de Carvalho e eu próprio. Só faltando acrescentar que, et pour cause, este artigo de M.S.T. termina  com um firme defesa da atitude que o governo assumiu perante as recentes decisões do Tribunal Constitucional.

Posto isto, faltando paciência para mais, sete observações:



É francamente espantoso que pessoas que se reclamam sempre de um desperto olhar sobre a evolução e mudanças nas sociedades contemporâneas, marcadas indiscutivelmente por uma sempre crescente complexidade das situações, dos conflitos  e dos problemas, venham suspirar  por uma Constituição que « pudéssemos recitar de cor». Neste domínio, é caso para dizer que até um ex-estudante fracassado de Direito como eu tem autoridade para dizer ao licenciado em Direito Miguel Sousa Tavares   que deve ter andado a passar pelas brasas durante as aulas de Direito Constitucional e que, para o ansiado  recitar de cor, melhor será então rezar Avé Marias.


A campanha contra a extensão da Constituição da República Portuguesa, actualmente com 296 artigos, tem tantos anos quanto a vigência da Constituição e, sobre isso, limito-me a repetir um desafio que já lancei no passado e que se pode resumir desta forma: «Deixem de ser preguiçosos, arregaçem as mangas e digam em concreto o que querem cortar e eu vos direi o que é que ideologicamente inspira esses cortes e o que procuram obter com eles; e também vos direi a quantidade de sarilhos e litigâncias de ordem constitucional que vão arranjar bem como as margens de incerteza, arbítrio e desprotecção que vão criar.»

A respeito de tamanhos, cumpre-me recordar que recordar que, entre os mais persistentes críticos da extensão da nossa Constituição, não me lembro de ter havido algum que tenha criado semelhante clamor a propósito do projecto de Constituição Europeia que tinha quase quinhentos artigos ou que, com regularidade, denuncie os normativos da UE  ( dos jaquinzinhos às galinhas poedeiras) dos quais se costuma dizer que, comparados com eles, os planos quinquenais soviéticos eram um modelo de simplicidade e liberalismo.


Já quanto ao alegadamente excessivo carácter programático da nossa Constituição, trata-se de uma clara manifestação simultaneamente de má-fé e de ignorância. Na verdade. só para citar alguns exemplos, a Constituição italiana (de 1947), a francesa (de 1958) e a espanhola (de 1978) estão cheias de artigos programáticos muito similares aos portugueses. A tal ponto que há uns anos num debate ocorrido no Museu-República e Resistência, como ilustração ou quase provocação, comecei a ler esses artigos durante cinco minutos e  depois disse aos assistentes: «Posso continuar por mais um quarto de hora, querem ou já lhes chega ?»., tendo os participantes optado pelo «já chega». Acresce ainda que uma maior densidade programática da nossa Constituição resulta naturalmente de ela ter incorporado não apenas o património específico de conquistas e aspirações da Revolução de Abril mas também do património de reflexão que internacionalmente se foi acumulando desde a elaboração das Constituições no pós-guerra.


Já quanto à demagogia fácil de M.S.T. sobre o «todos os direitos» e o «nenhum dever» na Constituição, só me apetece dizer duas coisas: uma é que foi pena que o ilustre comentador não nos tivesse explicado qual a lista de deveres que gostaria de ver consagrada na Lei Fundamental (ser bom "chefe de família", ser sócio do Benfica, perdão, do Futebol Clube do Porto, trabalhar honestamente, pagar impostos  ?(mas é preciso ?) ; a segunda é que o elevado Q.I. de MST e a sua formação jurídica não lhe permitiram perceber que, como vivemos em sociedade, por detrás de cada um dos direitos atribuídos aos cidadãos está reversamente consagrado o dever de não os ofender ou desrespeitar. Assim, entre dezenas de outros exemplos, se a Constituição consagra «o direito à vida» ou à «integridade pessoal» está automaticamente a consagrar o dever de não pôr em causa o direito à vida e o direito à integridade pessoal. And so on.

Acresce qye, para cúmulo do despautério, Miguel Sousa Tavares vem considerar um escândalo de bradar aos céus e, segundo ele, sem paralelo em todo o mundo, que um Tribunal Constitucional possa corrigir pontualmente  ou anular  por inconstitucionalidade um Orçamento de Estado, tese  que ainda por cima num tempo em que os governos passaram viciosamente  a despejar para dentro do Orçamento normas que deveriam ser objecto de autonomia legislativa, significaria um livre passaporte para todas as injustiças e prepotências.

Por fim, tenham dó e, por favor, não me venham com o exemplo da Constituição dos EUA que tem só 8 artigos (mas com várias secções) e 27 Emendas. É que os EUA tem a sua história própria, ficam do outro lado do Atlântico e a sua Constituição tem a impetuosa e fascinante juventude de ter sido escrita há 200 anos.

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