Não tem mistério que Agosto seja um mês mau para quem tem de escrever regularmente seja para a imprensa seja para blogues. À parte algum ego, é apenas isso que me leva a republicar hoje aqui um meu artigo no Público em 25 de Agosto de 2006 que me apareceu ao abrir um CD antigo.
Ainda a “geração de 60”
VÍTOR DIAS
A
conjugação de diversas efemérides ou circunstâncias – com destaque para o
centenário do nascimento de Marcelo Caetano que assumiu funções de Presidente
do Conselho em 1968 e para a evocação da chegada à categoria dos sexagenários
da geração dos baby boomers – deu
origem, tanto na imprensa como na blogoesfera, a variados testemunhos, reflexões
ou esboços de retratos da chamada “geração de 60” e também dessa década da
vida portuguesa.
Neste
final de Agosto, talvez os leitores ainda me consintam algumas anotações sobre
este tema que não pretendem entrar em polémica com ninguém mas apenas enunciar
algumas chamadas de atenção e colmatar certas lacunas por mim registadas, tudo
com vista a reduzir os riscos de simplificações e de esquematismo.
Assim,
em primeiro lugar, não me parece inútil recapitular que a expressão “geração de
60”, além
de ter uma inerente circunscrição etária tem também um clara delimitação de
carácter social, dado que, em vez de abarcar um diversificado conjunto de
membros de classes, camadas ou grupos sociais, de facto e em rigor apenas abrange
os estudantes e designadamente os de nível universitário (e, por vezes, de
entre estes, se o palavrão não chocasse, uma “vanguarda” ou núcleos mais
restritos de universitários que viriam a destacar-se posteriormente na vida
intelectual ou política do país).
Em
segundo lugar e, como consequência directa desta delimitação relativa à origem
social, é preciso não esquecer que, a meio da década de 60, os estudantes
universitários em Portugal talvez andassem pela casa dos 30 mil ou um pouco
mais e que as positivas mudanças de valores, de vivências, atitudes,
experiências e gostos culturais que normalmente são atribuídos à famosa
“geração de 60”
não podem ser automaticamente estendidos ao conjunto da juventude portuguesa
nessa época.
Aliás,
se bem me lembro, talvez não abrangessem sequer a maioria dos estudantes
universitários, como os Grandes Inquéritos da JUC à população universitária (o primeiro
de 1961 ou 1965, já não sei ao certo, e o segundo de 1967) bem revelaram, sem
prejuízo de atestarem, sequencialmente, avanços, progressos e mudanças de
mentalidades muito positivos.
E
muitos que, na década de 60, foram forçados a passar da frequência de um curso
universitário para a recruta do Curso de Oficiais Milicianos (isto é, exigindo
a conclusão do antigo 7º ano dos liceus) em Mafra, na EPI (Escola Prática de
Infantaria, ao tempo também conhecida como Entrada para o Inferno), rapidamente
descobriram, na convivência diária com os membros do seu pelotão, que aquele
era um “mundo” bastante diferente do “universo” das associações de estudantes.
Ou seja, que, em regra, a maioria seriam bons rapazes e estimáveis camaradas de
sofrimento, mas que eram muito acentuadas as diferenças pessoais em termos de
quadro de valores, de sociabilidade, de interesses culturais e de consciencialização
política.
Em
terceiro lugar, não me parece que as transformações societais ou o
compreensível deslumbramento com as “novidades” da década apaixonadamente
vividas pela chamada “geração de 60”
autorizem algum esquecimento ou menor atenção pelo mais que ia acontecendo no
pais real durante essa década e que, longe de constituir uma “festa”, antes representava
sofrimentos sem conta e autênticas desgraças nacionais.
Um
pouco mais de espírito de solidariedade e de responsabilidade como cidadãos
exige de todos que, nem que seja em lista abreviada e meramente
exemplificativa, não se esqueça que é na década de 60 que perto de um milhão de
portugueses “vota com os pés” emigrando “a salto” para a França e outros países
europeus; que é em 1962 que os trabalhadores rurais do Alentejo e do Ribatejo
têm de travar uma heróica e vitoriosa luta pela conquista das oito horas de
trabalho diário; que é exactamente a meio da década de 60 que o fascismo e a
PIDE assassinam o general Humberto Delgado; que é na década de 60 que decorre o
mais longo período das guerras coloniais e que terá levado para a guerra em
Angola, Moçambique e Guiné cerca de 800 mil jovens portugueses, criando uma
corrente profunda de dor e ansiedade quotidianas em grande parte das famílias
portuguesas.
Em
quarto lugar, e tendo em conta a primeira anotação feita neste texto, é uma
evidência que, como alguns lembraram, no processo de formação desta “geração”
desempenharam um papel muitíssimo importante as lutas estudantis conduzidas
pelas Associações de Estudantes que, por entre limitações, violências e
repressões sistemáticas ou intermitentes, representaram uma espécie de pequenas
“ilhas de liberdade” dentro da ditadura fascista e, em certas épocas,
importantes tribunas de afirmação de um discurso abertamente antifascista.
Mas,
a este respeito, importa lembrar a um ou outro romântico ou devoto da espontaneidade
que se tratava de “espaços de liberdade” conquistados pela resistência e pela
luta e de estruturas associativas dos estudantes cujo papel, acção e
intervenção eram evidentemente, em maior ou menor medida, tributárias de
determinadas concepções e orientações políticas, de trabalho político
organizado e de militância partidária nas Universidades.
E,
a meu ver, torna-se necessário insistir com firmeza neste ponto porque, de vez
em quando, já encontramos formulações marcadas pela ideia, a meu ver
perigosamente errónea, de que o “25 de Abril” foi sobretudo o mero desfecho
natural e inevitável de um conjunto de mudanças ocorridas na sociedade
portuguesa e do correlativo enfraquecimento da base de apoio ao regime.
Uma
tal tese comporta, de forma aberta ou velada, uma clara – mas inaceitável –
desconsideração e desvalorização da luta popular e democrática contra a
ditadura de Salazar e Caetano e passa ao lado da evidência de que, para a derrota
do fascismo, o enfraquecimento da sua base de apoio terá sido importante mas
seguramente menos do que a acção decisiva dos que, em vez de serem apenas
desafectos ao regime em termos verbais ou de consciência, tiveram a coragem e a
lucidez de ir mais longe, vencendo o medo, correndo riscos, trabalhando,
lutando e combatendo activamente contra a ditadura.
Tudo
visto, também sou dos que confessam ter algum orgulho em pertencer à “geração
de 60”.
Mas, ao contrário de outros, esse meu orgulho vem principalmente da
contribuição que ela deu para a conquista da liberdade em 25 de Abril, para a
“Festa de Abril” de abençoada e magnífica memória e para as posteriores tarefas
de democratização da vida nacional.
Tudo
visto, confirma-se o que já se devia saber: o nosso umbigo é o pior e mais
limitado horizonte para conhecer a vida, o país e a sua história e para perscrutar
os seus caminhos de futuro.
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