24 maio 2022

QUANDO MENOS SE ESPERA

 Mais um «putinista»


«O antigo secretário de Estado dos Estados Unidos Henry Kissinger apelou nesta terça-feira aos líderes ocidentais para pararem de tentar infligir uma pesada derrota às forças russas na Ucrânia, alertando para as consequências dessa investida na estabilidade europeia a longo prazo.

“As negociações têm de começar nos próximos dois meses, antes que surjam convulsões e tensões que não serão facilmente ultrapassadas”, afirmou no Fórum Económico Mundial, em Davos. “Idealmente, o limite deveria ser um regresso ao anterior statu quo. Avançar com os combates para além desse ponto não seria pela liberdade da Ucrânia, mas para uma nova guerra contra a Rússia.”» (Público online)

Nosso tempo

 Pandemia e crises
 não são para todos

(Público)

16 maio 2022

Espirito crítico precisa-se

 Lúcidas palavras
contra a corrente

« E isso é facilitado por uma coisa que já antes aqui escrevi e que tem passado tranquilamente face à indiferença geral: estamos perante a mais unilateral cobertura mediática de um conflito a que alguma vez assisti. Não culpo por isso directamente a imprensa ou os jornalistas, que relatam o que vêm e o melhor que podem, cumprindo a sua missão de denunciar o horror de uma guerra e o estendal de morte e destruição que a Rússia levou à Ucrânia. A questão é que eles estão apenas junto de um dos lados e reportando apenas aquilo que esse lado deixa e só depois de as coisas acontecerem: não assistem aos combates nem aos invocados massacres, não falam com o outro lado nem têm acesso à sua versão do mesmo acontecimento. E é sobre isso que depois os “analistas” e os “especialistas” extraem as suas conclusões, sempre de sentido único.

Um bom exemplo disso é o que se passou com os civis encurralados com os militares na fábrica Azovstal, em Mariupol. Durante dois meses foi-nos contado que mais de 1200 civis, mulheres e crianças, estavam refugiados nos subterrâneos da Azovstal, impedidos de sair pelos russos, que violavam sistematicamente todos os acordos de evacuação estabelecidos, incluindo os propostos pelos próprios russos. Ninguém nunca contestou a versão ucraniana e ninguém no terreno a confirmou. Mas quando António Guterres conseguiu colocar pessoal da ONU em Azovstal, em dois ou três dias, como que por milagre, todos os civis que quiseram foram evacuados sem qualquer incidente. A pergunta é: por que razão nunca alguém levantou a hipótese de os civis estarem a ser retidos pelos próprios militares do Batalhão Azov, que os usou como escudo, tentando assim garantir uma coisa impossível na guerra — saírem em liberdade juntamente com os civis sem terem de se render? O mesmo aconteceu em relação às incansáveis imagens de destruição de edifícios civis bombardeados pelos russos e às infindáveis entrevistas aos sobreviventes civis desses bombardeamentos. As imagens são tão revoltantes como as de qualquer outro conflito, como no Iémen ou na Síria, só que aqui, em maior escala e diariamente filmadas por centenas de jornalistas, transmitem uma narrativa de absoluto caos e de destruição quase sem precedentes. Em contrapartida, são escamoteadas quaisquer imagens dos alvos militares onde se sabe que os russos têm concentrado o grosso dos seus bombardeamentos, de modo a passar a ideia de que o alvo é indiscriminado e atinge sobretudo civis. E, todavia, segundo os números divulgados pela ONU em 9 de Maio, morreram na Ucrânia, ao fim de 75 dias de guerra, 3381 civis, embora estes números possam vir a ser “consideravelmente maiores”. Mas sabem quantos civis morreram no bombardeamento aéreo de dois dias dos Aliados a Dresden, durante a II Guerra Mundial? 22 mil. E em Hamburgo 50 mil. E 100 mil em Hiroxima e 70 mil em Nagasáqui, só no primeiro dia após despejada a bomba atómica, sem que em nenhum caso se tenha falado em “crimes de guerra” ou em “genocídio”, como agora se fala a propósito dos mortos civis na Ucrânia.» - Miguel Sousa Tavares no ultimo «Expresso».

13 maio 2022

Agora falam os acusados

 Tempo para uma outra versão

Extractos da entrevista de Igor Kashin e Julia Kashin ao «Público» e ao «Setubalense»

Porque estava a participar no acolhimento de refugiados ucranianos?

(IK) Porque acho que só participando no acolhimento é que mostrava a minha vontade de apoiar as pessoas. Acho que isso é normal. Tenho experiência para trabalhar numa área de imigração e fazer atendimento. Naquela altura, tudo começou de repente e praticamente ninguém estava preparado, também houve pessoas que contactaram directamente connosco e perguntaram o que é que se pode fazer. Neste sentido também se fez algumas perguntas à Câmara Municipal de Setúbal (CMS).

Que pessoas contactaram directamente convosco?

(IK) Os próprios ucranianos contactaram-nos directamente para resolver alguns problemas. Durante 17 anos trabalhámos nesta área, do acolhimento de imigrantes.


(JK) Foi tudo muito de repente e o Estado tinha de dar uma resposta muito rápida, por isso é que tudo aconteceu assim. Foi a melhor forma possível que a CMS conseguiu.

(IK) As pessoas perguntam “porque é um russo a ajudar os ucranianos?”. Acho que não há mal nenhum, porque existe experiência que vários russos em vários países fazem apoio no atendimento às pessoas. Nós somos humanos, temos de dar apoio.

Diz que há outros casos, no contexto desta guerra, de outras associações e de outros russos pela Europa também nesta situação a ajudar a acolher pessoas ucranianas.

(JK) Sim. E, pessoalmente, nós não temos nada contra os ucranianos. É mesmo do fundo do coração que nós tentamos ajudar as pessoas, nós nem imaginamos aquilo que eles passaram lá.

(IK) E também para mostrar que ser russo não é ser inimigo.

Era com esse espírito que estavam a ajudar?

(IK) Nós moramos cá há mais de 20 anos, a nossa associação foi fundada em 2002 para dar resposta às necessidades dos imigrantes, trabalhamos com todos. A maior parte da associação são imigrantes do Leste, sendo a maioria ucraniana, moldavos, russos. Mas russos são muito poucos.

Antes da criação do actual gabinete, a associação já estava a trabalhar com a CMS. Já havia um protocolo para ter dois colaboradores ao serviço da CMS. É isso?

(IK) Sim, havia.

Esses dois colaboradores eram a Júlia e o Igor?

(IK) Não, era a Júlia e uma senhora brasileira.

(JK) Ao início, quando foi assinado o protocolo com a CMS [2005], era para serem incluídos, no gabinete para os imigrantes, três colaboradores, uma pessoa brasileira, uma de leste e uma cabo-verdiana.


Portanto, três pessoas e não duas?

(JK) Sim, mas a cabo-verdiana era como funcionária da CMS, por isso surgiu esta solução para celebrar o protocolo com a associação para colocar as pessoas a trabalhar no apoio dos imigrantes, porque na altura nós não tínhamos nacionalidade portuguesa para poder ser inseridos nos quadros da CMS.

(IK) Esta é a forma como o Alto Comissariado [para as Migrações] funciona, neste modelo. Eles enquadraram as pessoas no serviço através dos protocolos com as associações de imigrantes.

E, em Fevereiro deste ano, quem eram esses dois colaboradores?

(JK) Em Fevereiro já não era eu. Estava previsto acabar com este protocolo este ano porque eu já consegui entrar no quadro.

Portanto, este protocolo já estava no final e já não havia dois colaboradores designados?

(JK) Não havia, porque o protocolo termina em Maio. Até Dezembro de 2021 eram dois colaboradores, eu e a senhora brasileira, mas depois ficou só ela, uma vez que eu entrei na CMS.

Então o Igor estava no acolhimento em que qualidade?

(JK) Voluntário da associação.

(IK) Sim, como tenho experiência e algum trabalho desenvolvido, e também porque as pessoas me conheciam e era eu que dirigia cá os imigrantes. As pessoas já me conhecem e perguntavam-me como acolher um familiar seu que foi trazido de lá, da Polónia ou directamente da Ucrânia.

O Igor é que estava no gabinete sempre, de vez em quando, se fosse chamado, ou cumpria um horário?

(IK) Sempre que podia estava lá, mas sempre que havia um atendimento estava lá um técnico da CMS.


(JK) Nós nem pensámos nessa questão, de quem vai atender os refugiados, se russos ou ucranianos. Não pensámos mesmo, havia uma situação de urgência que ninguém esperava.

Fazia mesmo falta a vossa tradução? Não existiam tradutores ucranianos que pudessem fazer isso?

(JK) A questão nem era a tradução nem sermos tradutores. No meu caso, era mesmo o meu trabalho, visto que trabalho no gabinete de apoio aos imigrantes. Nós também atendemos cidadãos de outros países, outros refugiados que já havia antes, como da Síria. É o meu trabalho.

O jornal Expresso diz que o Igor tinha lá o seu computador. Trabalhava com o seu computador pessoal?

(IK) Trabalhávamos com os computadores da CMS e portáteis da CMS.

Sempre trabalhou com equipamentos da CMS, não tinha lá o seu pessoal?

(IK) Não é uma questão de computadores. O que eu usava era dado pela CMS.

Quanto aos documentos das pessoas, eram feitas digitalizações ou fotocópias?

(JK) As duas coisas, porque o atendimento de refugiados era intermediado como atendimento social, tudo tratado por um técnico da CMS, porque nós estávamos sempre acompanhados por uma portuguesa.

Esse protocolo já existia ou foi criado agora para o acolhimento de refugiados?

(JK) É um formulário, rápido, criado para agora, mas as questões colocadas são de atendimento social a qualquer cidadão. Foram tiradas fotocópias do passaporte e da certidão de registo de protecção temporária, que foram juntas ao processo e guardadas mesmo na câmara. A digitalização é feita para carregar na plataforma do SEF, para fazer o registo de protecção temporária. Temos que digitalizar os documentos e anexar na plataforma. As questões colocadas pela plataforma do SEF, e não por nós, são o nome da mãe, nome do pai, local de nascimento, agregado familiar. Tem que ir tudo preenchido.


Como eram guardados os dados na câmara?

(JK) Os processos, fisicamente, em papel, eram guardados lá, no gabinete da câmara.

A associação ou o Igor, a título pessoal, ficaram também com esses dados?

(IK) Não. Nós não precisamos destes dados. O único sítio para onde foram encaminhados alguns foi para o IEFP, para inscrição no curso de português.

Pessoalmente não guardou os dados?

(IK) Não. Para quê?

(JK) Para quê? Não faz sentido.

E podem garantir que não os partilharam nem enviaram para qualquer lado?

(IK) Eu garanto, com toda a seriedade, que não enviámos para qualquer autoridade russa, nem embaixada. Não foi enviado e isso nem foi pensado.

(JK) Não faz sentido, mesmo.

Nos processos para a câmara, não era feita depois uma versão digital?

(JK) Não. Depois havia os técnicos da câmara, com outros procedimentos e contactos com outras instituições. Esse trabalho era feito por outras pessoas.

O jornal Expresso publicou o testemunho de uma refugiada ucraniana a dizer que o Igor lhe perguntou onde estava o marido.

(IK) Não me lembro do assunto, concretamente, mas nas conversas, para o preenchimento dos dados, temos de perguntar sempre relativamente ao agregado familiar. No atendimento, as próprias pessoas falavam de pai, mãe, de familiares que ficaram lá. Na conversa poderia haver perguntas, sobre onde estão ou para onde querem ir e se conseguem vir para Portugal. Porque, naquela altura, várias pessoas contactaram connosco com pedidos de apoio ou de informação sobre como podiam sair da Ucrânia. Algumas pessoas saíram pela Polónia, outras tentaram pela Moldova, houve pessoas que tentaram sair no próprio carro.

(JK) Ajudamos quem procura contactos de quem pode ajudar a tirar as pessoas de lá.

O que está a dizer é que as perguntas não foram para identificar combatentes, mas para ajudar a saída de refugiados?

(IK) Sim. Podia haver uma conversa qualquer, não me lembro. Foram várias pessoas. Umas diziam ‘olha, o marido está em serviço’, ‘olha, consegue sair, não consegue sair”. Por exemplo, diziam “ele está perto da zona da Polónia, não sei se ele consegue sair”, ou noutra zona qualquer. Há zonas mais conflituosas de onde as pessoas não conseguem sair e outras mais calmas de onde conseguem. Obter esses dados para recolha, para registar ou enviar para alguém? Não!

Não registavam esses dados?

(IK) Claro que não. O registo era só dos dados do formulário. De resto, as pessoas falaram de tudo e de mais alguma coisa.

Houve casos de pessoas que conseguiram sair da Ucrânia com a vossa ajuda?

(IK) Nós damos os contactos de quem pode ajudar, de grupos do Facebook, on-line.

(JK) Depois apareceram muitos anúncios do género ‘daqui a uma semana vai haver um carro que pode trazer quatro pessoas’, e quando eu encontrava essa informação mandava para as pessoas.

A PJ fez buscas, na terça-feira, na Linha de Apoio a Refugiados de Setúbal. Foram constituídos arguidos?

(IK) Não. Até ver, não. A Judiciária faz o seu trabalho, que faça o que deve fazer, nós não temos nada a esconder.

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O Igor tem sido apontado como próximo do regime russo? É verdade?

(IK) Está a fazer-me uma pergunta política, mas eu não sou político. Na minha situação, é irresponsável apontar se estou de um lado ou do outro. Eu sou do lado humano. Se é necessário dar uma ajuda humana às pessoas que precisam, refugiados e outras pessoas do Leste que também sofrem alguma perseguição ou pressão, eu ajudo. É incorrecto e irresponsável dizer que eu estou por um ou outro regime. Eu estou em Portugal há 20 anos. Sou pró-humano e o que me interessa é o que vai acontecer neste momento a todas as comunidades em Portugal.

(JK) Somos mais portugueses do que pró-outros.

Sentem-se mais portugueses?

(JK) Sim.

(IK) Se vocês perguntam se eu sou russo, sim, sou russo. Se isso é crime, não sei. No nosso trabalho sempre tentámos dar a imagem que os imigrantes que estão cá têm de estar unidos. O caminho deles, mesmo preservando as suas raízes culturais e a integração na sociedade portuguesa, é contribuir para o desenvolvimento da sociedade portuguesa.


Nessa conferência defendeu uma “cooperação estreita entre os órgãos legislativos da Federação Russa” para que os compatriotas da diáspora tivessem o direito a ser ouvidos.

(IK) Sim. Claro que queria. Isso é normal. A comunidade emigrante portuguesa, salvo erro, elege seis deputados. Estes deputados conseguem trazer as necessidades das pessoas, como assuntos consulares e outras, para o nível do Parlamento. Na Rússia isso não existia. Havia alguns encontros com deputados russos e eu também colocava estas questões, como, por exemplo, a que tem a ver com a obtenção de nacionalidade para os filhos de russos em casamentos mistos [com estrangeiros]. Ou acordos bilaterais na área social, que existem entre a Ucrânia e a Moldova e que com a Rússia não existiam. Todas estas questões foram levantadas.

(JK) São questões que têm a ver com as necessidades das pessoas.

(IK) Foi uma oportunidade de levar essas necessidades para lá e, ao mesmo tempo, promover Portugal. É uma sorte ter uma oportunidade destas para dizer “atenção, Portugal tem estas pessoas, da diáspora, que trabalham com o Estado português e que estão integradas, mas que têm problemas que deviam ser resolvidos”. Há coisas, como as reformas e outras questões sociais, que não são entre nós e o Estado português, mas entre este e o Estado russo. Em 2015 o próprio ACIDI [Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural] defendia a importância destes acordos bilaterais.

(JK) Quando chegámos, apaixonámo-nos mesmo por Portugal e tentámos sempre, durante 20 anos, promover o país.

(IK) Também criámos o Gabinete de Apoio à Integração de Imigrantes Empreendedores [com o apoio do ACM], para tentar aproximar os empresários, portugueses, russos, ucranianos e de outros países de Leste. Várias pessoas da Ucrânia vieram assim e conseguiram estabelecer negócios com Portugal.

(JK) Nós vivemos cá, os nossos filhos nasceram cá, e o nosso grande interesse é que Portugal se desenvolva. E em paz.


(IK) A Fundação Russkiy Mir é uma estrutura tipo o Instituto Camões, que promove a língua portuguesa no estrangeiro e tem as suas actividades, tem os seus apoios.

Não é uma organização ao serviço da propaganda da Rússia?

(IK) Eu não sei se é propaganda ou não. Quando trabalhámos com a fundação, naquele projecto que tivemos, foi só uma questão cultural, promoção da língua. Foi há mais de sete anos. Havia duas funções para esta escola. Para as crianças recém-chegadas, que sofrem um choque de entrada na escola portuguesa, a função era dar-lhes a possibilidade de comunicar com outras crianças, que já estão integradas na comunidade e nas escolas portuguesas, e perceber alguns pormenores. E para outras crianças que nasceram cá, como os nossos filhos, por exemplo, poderem aprender a língua, porque os pais podem até ensinar, mas não conseguem dar aquela especificidade, e as crianças não olham para os pais e mães como professores.

Têm dois filhos nascidos em Portugal?

(IK) Exactamente.

(JK) O nosso filho mais novo, quando fala em russo, é tudo ao contrário. Ele pensa em português e, depois, tem de traduzir de português para russo. Se algum russo falar com ele nota logo. É um português.

Como se lembraram de fundar a Edinstvo, em 2002?

(IK) É uma história muito interessante. Na altura, estávamos a ajudar na abertura de uma loja de produtos de Leste e apareceram pessoas a colocar várias questões, sobre estadia, emprego, etc., e nós tentámos contactar com entidades, como o SEF, para saber se havia possibilidade de organizar um encontro de esclarecimento. No SEF é que nos disseram que só podiam responder a uma estrutura organizada…

(JK) Foram eles próprios que nos sugeriram que criássemos uma associação.

(IK) Começámos a estabelecer contactos e o primeiro encontro em Portugal entre o SEF e os imigrantes de Leste aconteceu em 2003, em Setúbal, e os imigrantes até estavam com medo de participar porque podiam ser detidos. O SEF também não estava preparado para ir e colocava-nos várias questões, mas conseguimos organizar o encontro, também graças à câmara que disponibilizou um espaço. Nós criámos um livro, em duas línguas, russo e português, como um guia de perguntas e respostas sobre o processo de legalização, para ajudar os imigrantes. E depois organizámos também um encontro com a Segurança Social, sobre a importância de pagar as contribuições, e também foi criada uma brochura. Nessa altura, o ACIDI ainda não estava tão desenvolvido como agora.

A associação tem tido apenas actividade social e não política?

(IK) Sim.

(JK) Esse é mesmo o objectivo da associação, não tem nada a ver com política, propaganda ou alguma dessas coisas. Toda a actividade está ligada à integração das pessoas na comunidade portuguesa.

(IK) E está aberta a todos os que quisessem participar. Os portugueses também participaram. Havia famílias mistas, que mandaram crianças para a escola, ou participaram nas nossas actividades.

Têm ideia de quantos ucranianos e russos a associação atendeu em 20 anos?

(JK) Não foram cem nem mil. Foram milhares.

De todas as nacionalidades de Leste?

(IK) A maioria ucraniana. Porque é a comunidade mais representada.

Tenho aqui um número que diz que, de 2019 a 2021, foram atendidos no gabinete municipal de imigrantes, em Setúbal, 631 ucranianos, 276 moldavos e 68 russos. A proporção será esta?

(IK) Sim, é isso.


Por que é que o Igor deixou de ser presidente da Edinstvo e passou a ser a Júlia?

(IK) Foi em 2017, porque eu tenho outros projectos, tinha de me dedicar mais a trabalho. É uma questão pessoal, digamos assim.

(JK) O trabalho na associação é voluntário e nós temos que trabalhar para viver, além da associação. Quando temos duas crianças, temos que ter mais rendimentos

Qual tem sido a profissão do Igor em Portugal nos últimos anos?

(IK) Trabalhei nos projectos da associação, como chefe do gabinete de apoio à integração de imigrantes empreendedores e como formador no IEFP.

Porque têm estado em silêncio?

(IK) Primeiro, porque não sou uma pessoa pública, não tenho experiência para trabalhar com jornalistas. E com este contexto de guerra e tudo à volta, preferi ficar mais recatado, até que fique tudo esclarecido, que as pessoas percebam que é assim. Mas a polémica aumentou e fiquei preocupado com a família e com o que se poderia passar.

(JK) E outra coisa: não sentimos culpa por aquilo que aconteceu. Tudo foi feito com boa intenção e de acordo com todos os procedimentos estabelecidos. E ficámos numa situação em que nós é que temos que provar que não somos maus. Ficámos chocados.

(IK) A intenção foi sempre mostrar que não havia conflito dentro da comunidade, porque é difícil gerir a situação quando temos pessoas das várias partes da Ucrânia cá em Setúbal e em Portugal, que neste momento estão em confronto uma com a outra, lá.

Entre ucranianos?

(IK) Sim, entre ucranianos. O objectivo do nosso apoio foi não transmitir o conflito de lá para aqui. É difícil. Nós tivemos um projecto de mediação intercultural, tentamos mediar e não deixar as pessoas odiarem-se umas às outras.

Como classifica o ambiente actual entre os imigrantes de Leste aqui na região?

(IK) É tenso. Eu percebo as pessoas. Eles querem combater e proteger os seus, mas não é combater aqui, entre pessoas que se conhecem. A guerra não é aqui, aqui há paz. A cidade tem que manter a paz. E o que nós tentamos em Setúbal é manter a paz. Perguntam porque é que eu ajudo os ucranianos, se eu sou russo. Eu disse sempre, ‘nós temos de ajudar as pessoas quando têm necessidade de ajuda’. Não vou perguntar se é ucraniano, russo ou de outra etnia qualquer. Se a pessoa chegou, precisa de ser ajudada e não prejudicada.

Como se sentem com toda esta situação?

(JK) Sentimos uma injustiça. É o primeiro sentimento. Agora até os outros voluntários têm medo de ajudar as pessoas, por poderem ser prejudicados.

(IK) Nós queremos fazer o bem e depois somos postos como estando a fazer o mal. Os voluntários estão um bocadinho em choque, estão com medo, querem-se afastar-se. Isso tem que ser pensado, ninguém fala sobre o que sentem os voluntários. Pelo voluntário passa a vida das pessoas, e as pessoas desgastam-se porque, não conseguindo dar resposta e mesmo dando ajuda, ou alguma coisa, aparecem notícias como esta.

(JK) Os nossos próprios filhos comentaram com os professores: “vocês não viram o estado dos nossos pais, na altura do atendimento, ficaram desgastados.” Eu, quando cheguei a casa, não conseguia falar.

(IK) Não é fácil, e não é por sermos russos a ajudar ucranianos. Quando somos confrontados com necessidades de casa, alimentação, estadia, onde ir, onde procurar emprego, etc…

(JK) E depois há estas questões políticas. Não sei. As pessoas não nos conhecem mas não têm vergonha de dizer estas coisas e que somos culpados. Dão os factos como consumados. Pensem que somos pessoas, que temos família, temos a nossa vida pessoal.


A Júlia foi retirada ou pediu para sair daquele serviço da câmara?

(JK) Fui logo afastada do atendimento a refugiados. Já nem estou no atendimento dos outros imigrantes. A situação tem de ser esclarecida, acalmada, para eu conseguir voltar às minhas funções normais. Recebo não sei quantas chamadas, o telefone não pára de tocar, as pessoas perguntam quando é que podem ser atendidas por mim.

As pessoas perguntam por si, incluindo ucranianos?

(JK) Incluindo alguns refugiados que atendi lá no gabinete. Da Ucrânia e de outros países. Ligam directamente para mim. Eles precisam de alguma janela para a burocracia portuguesa. É através de nós que eles conseguem perceber como funciona Portugal.

(IK) Porque o nosso número também está espalhado e as pessoas sabem e contactam connosco.

Como vê a guerra na Ucrânia?

(IK) É uma tragédia. O que é que eu posso dizer? É uma tragédia. Isso tem de ser acalmado e tratado pelos políticos.

E não se quer meter nessa área da política?

(IK) Não quero.


Propostas do PCP para o OE 22


Prioridade ao essencial