28 abril 2016

Ainda sobre o «impeachment» no Brasil

Não é demais insistir 



No Público de hoje

«(...) É aqui, portanto, que situo a atual crise política vivida no Brasil, da qual podemos sair mais ou menos fortalecidos do ponto de vista do progresso de uma democracia que ainda não comemorou a terceira década. Dessa crise, pode derivar a destituição de uma Presidente da República, sem que ela tenha cometido qualquer crime de responsabilidade, pressuposto situado nas entranhas da Constituição, sem o qual o processo de impeachment se reveste de grave atentado ao documento que inaugurou entre nós um estado democrático de direito. Sem argumento convincente, a ponto de o saber jurídico nacional estar fraturado, tentam enquadrar, na categoria de tais crimes, duas posturas de Dilma Rousseff que não representam qualquer atentado ao ordenamento jurídico brasileiro, porque não possuem a necessária previsão legal: as ditas pedaladas fiscais e a assinatura de decretos de suplementação orçamentária.
Ambas as condutas, constantes da denúncia assinada por três juristas, e aceita por Eduardo Cunha, um presidente da Câmara enredado em escândalos de corrupção, são práticas corriqueiras na Administração Pública do Brasil: governadores e prefeitos recorrem a elas todos os dias, sem contar que todos os anteriores presidentes da república as cometeram ao longo de seus respectivos mandatos. Só agora, num gesto de franco atentado à segurança jurídica prevista na mesma Constituição, um conjunto de forças políticas, judiciais e mediáticas resolveu transmutar em crime de responsabilidade o que era e continua a ser visto, em Estados e municípios, como conduta habitual. E o pior: recorrem ao texto constitucional para respaldar algo que o próprio texto repudia. Trata-se de inominável esquizofrenia.
Um exemplo, apenas, para que entendamos com clareza o que se passa: Dilma Rousseff é acusada de ter cometido crime por ter assinado seis decretos de crédito suplementar, que — é bom que se diga — não aumentaram os gastos do governo. Por sua vez, em prática exatamente igual, o governador de São Paulo, do mesmo PSDB que agora pede a saída de Rousseff, assinou, no ano passado, mais de três dezenas de decretos com o mesmo teor. Na São Paulo de Geraldo Alckmin, sim; na Brasília de Dilma Rousseff, não. Não é demais recordar que o atual vice-presidente, Michel Temer, também autorizou decretos semelhantes em vários momentos em que assumiu interinamente a presidência durante as viagens de Dilma ao exterior. Nem Alckmin, nem Temer foram questionados em suas condutas. Não é crime de responsabilidade. O mesmo não se diz em relação a Rousseff. Como se vê, falta ao atual processo de impedimento a luz radiante da legalidade, sem a qual cairemos, indefesos, no pântano da insegurança jurídica e do arbítrio. (...)

(O autor é Doutorando em Comunicação da Universidade de Brasília. Investigador do Núcleo de Estudos em Mídia e Política da Universidade de Brasília (NEMP-UnB) e do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20/UC)

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