Um chato e longuíssimo post
sobre a reescrita de uma história
Esclarecendo que estou tão a milhas das discrepâncias dentro do Bloco de Esquerda como do confronto Seguro-Costa no PS, porque nestas coisas sobra sempre alguma coisa sobre terceiros, há coisas para que tenho de chamar a atenção, em respeito pelo que eu julgo ser a verdade histórica.
É assim que não posso deixar de registar que a corrente Manifesto do BE acaba de escrever o seguinte (sublinhados meus):
Lido isto, uma vez que sobre «o PCP indisponível para a governação» já respondi aqui (e esse post aplica-se perfeitamente ao simplismo da crónica de Rui Tavares hoje no Público), tenho de dizer que ou estamos perante um patente caso de amnésia política ou perante um caso de conveniente reescrita da história, pois, na minha opinião, no tempo da fundação e nos primeiros anos de vida do Bloco a «construção de pontes» ou «o diálogo entre as esquerdas» ou as disponibildades para responsabilidades governativas eram quase zero, vingando sim a linha de orientação consagrada na fórmula «correr por fora». E aqui chamo a atenção para que o «correr por fora» não é invenção minha, como se comprova por esta passagem escrita há não muito tempo por Daniel Oliveira no «arrastão».
Aqui chegado, eu poderia tentar fazer um resumo do que nos anos iniciais era de facto a orientação táctica e estratégica do Bloco mas, para não se perderem certos elementos mais vivos e factuais da época o que proponho a quem tiver paciência para tanto é uma viagem pelas partes sublinhadas em três crónicas minhas sobre o BE publicadas em 1999, 2002 e 2004 e que creio mostrarem insofismávelmente que «o compromisso matricial» do Bloco agora tão invocado é uma construção dos dias de hoje. É muito longo e chato mas mais longo seria proceder aqui a uma antologia de declarações de dirigentes do PE que com algum trabalho poderia reunir.
Começar
mal
(Avante! de 21.1.1999)
Por
ocasião do lançamento, no último fim de semana, da tentativa de
mais uma experiência de agregação eleitoral na área da UDP, do
PSR e da Política XXI, alguns dirigentes do PSR e da UDP produziram
declarações relativas ao PCP que se arriscam a ficar como um
lamentável indício de qual poderá ser o seu verdadeiro desígnio
eleitoral e dos tristes métodos que se dispõem a usar para o
atingir.
Com
efeito, e só para citar algumas frases mais significativas, Alberto
Matos (UDP) invocou as «ambiguidades»
do PCP face ao PS
e falou
das « «colagem
do PCP ao Governo à espera de uns lugares».
Luís Fazenda (UDP) referiu que o país não precisa de «uma
oposição que num dia proteste e no dia seguinte esteja a tentar um
negócio de poder», reclamando
de seguida que «o
PCP que se defina». E,
para abreviar a lista, acrescente-se que Heitor de Sousa, no
Congresso do PSR, terá também acusado o PCP de ter uma posição de
compromisso com a política de direita assim induzindo uma postura
conformista e rotineira do movimento operário.
Deixando-nos
de punhos de renda, é caso para dizer que os autores destas
declarações, proclamam querer «começar de novo», mas começam é
mal.
Porque começam por
deturpar, falsificar e amesquinhar a indiscutível realidade de que o
PCP tem sido a grande força de oposição de esquerda ao Governo do
PS, agindo em todos os planos da vida nacional com rigorosa autonomia
política e estratégica e desempenhando um papel incontornável não
apenas na defesa de interesses populares imediatos mas também na
luta por valores, por uma política e por um projecto alternativo de
esquerda.
Porque
começam dando objectivamente continuidade à operação lançada
pelo PSD, e especialmente acarinhada pelo «Expresso», para
apresentar o PCP como
«muleta do PS»,
precisamente para fazer esquecer que, nesta legislatura e nas
matérias fundamentais e decisivas, os grandes aliados do PS têm
sido o PSD e o PP.
Porque começam com o
truque de, olhando o campo da esquerda, precisarem de decretar que é
um deserto para melhor se apresentarem a si próprios como uma
miragem do desejado oásis.
Éisto que, para já, não deixamos passar em claro.
(...)
Colo,
doce colo
(Avante! de 14.3.2002)
Pelos vistos, a campanha não podia terminar sem que
responsáveis do Bloco de Esquerda dessem mais um testemunho da sua peculiar
«nova forma» de fazer política que consiste em deturpar, fria e
premeditadamente, as posições do PCP.
Com efeito,
discursando na Aula Magna e depois de se referir à orientação do CDS-PP, Miguel
Portas sentenciou que «o problema do
Partido Comunista nesta disputa eleitoral é que a sua proposta é, no fundo,
simétrica, obviamente diferente, mas é simétrica [à do CDS-PP]. O PS é péssimo, horroroso, mas desde que o
PCP esteja no Governo, a coisa obviamente que é outra».
A questão é apenas
esta: Miguel Portas sabe perfeitamente que o que o PCP anunciou e reiterou,
para depois de 17 de Março, foi a sua disponibilidade «para examinar com as
outras forças democráticas as possibilidades de definição de uma política de
esquerda (que signifique um ruptura com a política até seguida) e de
concretizaçao de uma solução governativa capaz de a respeitar, garantir e
aplicar». Logo acrescentando que, para isto, o que mais conta é o reforço da
votação da CDU.
Confundir a precisa,
rigorosa e importante substância desta posição
com qualquer propósito de ir para o governo a qualquer preço e, ainda
por cima, com o efeito automático de transformar
o «péssimo» em óptimo e o «horroroso» em exaltante é uma pura e lamentável
desonestidade, bem representativa das
mais velhas e bafientas formas de fazer política, à esquerda ou à direita.
Acresce que esta
autoproclamada «esquerda moderna» também parece não ter grande apreço pela
coerência. Em entrevista a F. Louçã (28/2), uma
jornalista do «Público», em ostensiva deturpação, aludiu a que para o
PCP «o PS e o PSD são a mesma coisa». Louçã aproveitou gulosamente a boleia e
logo desancou no «discurso simplista do PCP, como se todos os gatos fossem
pardos em noite de lua nova». O problema é que se, neste âmbito, não existissem
dezenas de outras afirmações de dirigentes do Bloco de brutal amálgama
entre o PS e o PSD (como o PCP nunca
fez), aí estaria a recente afirmação de Louçã no mesmo comício de que PS e PSD
eram irmãos «absolutamente siameses» para se saber em que cabeças passeiam
gatos pardos e quem é que debita um «discurso simplista».
Os responsáveis do
Bloco andam manifestamente felizes por, nesta campanha, serem positivamente
levados ao colo pela maior parte dos órgãos de comunicação social que, como é
sabido, suspiram por uma política radicalmente de esquerda. -
Felizes podem estar,
apesar do bonito serviço que em Dezembro prestaram à cidade de Lisboa. Mas
deviam saber que impunidade política é coisa que, se não a reclamamos para nós,
também não a concedemos a ninguém.
No Avante" de 23.12.2004
Para quem compreensivelmente se tenha perdido pelo caminho, é só reparar, para além de outras diferenças, que onde hoje há supostamente «um PCP indisponível para a governação», há 15 ou 10 anos havia um PCP sobre o qual se lançava a suspeição de que querer fazer «um negócio de poder» com o PS.