19 março 2025

Aquela pergunta

«os russos estarão realmente interessados em tomar
Vila Real de Santo António? »

Ana Cristina Leonardo no «Público» de 14.3

(...)«Está bem de ver que a alteração da política externa norte-americana — com Donald Trump a suspender o apoio à Ucrânia e a insistir em negociações numa altura em que os avanços russos se tornam indesmentíveis — está na raiz da viragem armamentista.

Desde o início, porém, que mentes mais pragmáticas — e menos convencidas de que na História prevalece uma versão cor-de-rosa na qual os justos saem invariavelmente vencedores — vinham avisando que o optimismo de Ursula von der Leyen — que logo em Abril de 2022 afirmava (sic) “a falência do Estado russo é apenas uma questão de tempo”, convicção reforçadíssima pelas suas declarações no mês de Setembro seguinte, “os militares russos estão a tirar fichas dos frigoríficos para arranjarem os seus equipamentos militares, porque ficaram sem semicondutores”, ou, em Fevereiro do ano passado, quando anunciou que a guerra com a Rússia havia acelerado a transição ecológica da União Europeia, tornando-nos mais verdes (“ele [Putin] realmente impulsionou a transição ecológica”) — talvez fosse exagerado.

O que não deixa de me surpreender é como alguém que se enganou tanto e tão tragicamente continue responsável por delinear a estratégia futura que, desta vez, sim!, levará ao colapso da Federação Russa e à avaria definitiva de todos os seus frigoríficos, assim como ao reforço das energias renováveis, mesmo ignorando o facto de o nuclear estar de novo em alta, por exemplo, com Emmanuel Macron, contrariando o que dizia serem as suas convicções ecológicas, a mandar reactivar o reactor nuclear EPR de Flamanville, o mais potente reactor francês, ou mesmo a lembrar aos russos que a França dispõe de arsenal nuclear capaz de entrar em acção em caso de necessidade.

Os que viram a comédia negra de Stanley Kubrick, lançada dois anos após a crise dos mísseis em Cuba, Dr. Strange Love or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, sabem como a história acaba. E quem também poderia falar com grande à-vontade sobre o assunto seria a centena de sobreviventes de Hiroxima e Nagasáqui, se algum deles ainda estivesse vivo.

Tenho muitas dúvidas de que o voluntarismo europeu possa resultar em voluntários suficientes para ir combater os russos lá onde eles estiverem. O mantra dominante — e porque referi a obra de Kubrick, relembro outro filme, neste caso também uma comédia, embora menos negra, Vêm aí os Russos, de Norman Jewison, realizada em 1966 — é que ou nós vencemos os russos ou os russos vencem-nos a nós. No solo ucraniano não estariam em causa a independência e integridade do país, mas da liberdade e democracia europeias.

Não fica claro como, após mais de três anos de guerra substancialmente apoiada pelos EUA, os russos não foram vencidos, sendo agora, com o exército europeu imaginado por Macron, os 800 mil milhões orçamentados no ReArm e com Trump fora de cena, que a vitória estaria assegurada mais tarde ou mais cedo. Passaríamos de “até ao último ucraniano” para “até ao último europeu de bem”? E, arriscando levar com um “mais um putinista a soldo”: os russos estarão realmente interessados em tomar Vila Real de Santo António?  (...)»

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