02 fevereiro 2024

Um artigo de Bárbara Reis do «Público»

 

O texto é longo  mas
 excelente para demonstrar
como televisões
favorecem o Chega

SIC e CNN e aquele partido

É fácil criticar as televisões: fazem coisas boas, mas vivem para as audiências, cortam a palavra a políticos para a darem a futebolistas, fazem maratonas de directos sem nada de novo, alimentam a superficialidade, copiam os jornais.

É tudo sabido.

O que me traz aqui hoje é a cobertura que as televisões estão a fazer do Chega.

Não escrevi "Chega" no título e optei pela fórmula "RAPiana" do Programa cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer. Podia dizer "Chega" – e o Chega agradecia – mas não vale a pena.

Vou dar dois exemplos de como as televisões estão a ajudar o Chega a crescer. É literal.

Não terá reparado, mas na quarta-feira, dia 24, o Chega anunciou que ia fazer um "congresso eleitoral" no sábado, 27, em Sacavém, entre as 15h e as 19h, para apresentar "as linhas fundamentais" do seu programa eleitoral. Como o partido teve um congresso há duas semanas, o anúncio causou estranheza. Mais um congresso?

O que fizeram os media com este anúncio?

Às 19h20, o Correio da Manhã publicou uma notícia com o título ‘Cortar a direito pela decência’: André Ventura aponta critério do Chega sobre casos de corrupção. A notícia tem 1500 caracteres e refere o "Congresso Eleitoral do Chega", mas em nenhum momento fala das "linhas fundamentais" do programa eleitoral do partido, as tais que iam ser apresentadas.

A seguir, às 19h42, a agência Lusa publicou uma peça, com o título Eleições: Ventura acusa PSD de incoerência e PS de preparar ‘maior ataque à justiça’ se vencer. Tem 2200 caracteres e, de novo, nem uma palavra para as "linhas fundamentais". Que tenha visto, só a Rádio Renascença publicou esse "take" da Lusa. Muitos media optaram por ignorar, não publicaram a Lusa e não enviaram repórteres para Sacavém.

O que fizeram as televisões nesse sábado com o congresso-que-não-era-um-congresso? Um festim.

A SIC Notícias fez um directo do pseudo-congresso às 16h19. Três minutos. Às 17h37 fez um novo directo. Mais três minutos. Mal acaba o directo, entrevista a uma analista, Cátia Moreira de Carvalho, da Universidade do Porto – a investigadora num canto e imagens do "congresso" em dois terços do ecrã. Mais cinco minutos.

A seguir, Paulo Baldaia e Maria João Marques aparecem a comentar. O quê? O Chega. No rodapé: "Chega realiza convenção eleitoral". O que ocupa a maior parte do ecrã? Ventura, claro. Falam até às 18h18, quando Ventura começa o discurso – que é um comício, não é a apresentação de "linhas fundamentais".

Das 18h18 às 18h23, a SIC Notícias dá o discurso em directo. Mais cinco minutos. A seguir, os comentadores regressam e voltam a comentar o Chega. Já vamos em quantos minutos sobre um congresso que não é um congresso? Corta para publicidade e, às 19h08, a SIC Notícias emite uma peça sobre o discurso de Ventura. Mais dois minutos. Seguido de quê? Da análise de Sebastião Bugalho e Miguel Morgado. Sobre o quê? Ventura. Estamos nisto até às 19h21.

Na CNN, a festa foi parecida. Entre as 18h e as 20h30, o Chega e Ventura estão perto de omnipresentes. Às 18h16, Sara de Melo Rocha, pivot, diz "por falar em extrema-direita", como forma de anunciar que a estação vai "acompanhar a apresentação do programa eleitoral", Ventura já está a falar no não-congresso e entra em directo.

O líder do Chega está a dizer que "o país ficará espantado", pela positiva, com o seu programa eleitoral, há muitas palmas, mas "linhas fundamentais", zero. Até às 18h21, Ventura fala em directo sobre a "podridão", "degradação" e "corrupção", no seu habitual retrato de Portugal como o país mais decadente do planeta.

A pivot Melo Rocha corta o directo e resume: "Para já, ainda não há medidas apresentadas". Percebe-se o esforço. Mas alguém acreditou que ia haver? A maioria dos media não acreditou e nem foi a Sacavém.

Já terá perdido a paciência com tanto pormenor. Isto é só um exemplo: um pseudo-evento e duas televisões. O Chega cresce por muitas razões. As televisões não podem pôr a cabeça na areia e fazer de conta que nem sabem do que estamos a falar.


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