Desta vez,
Barata Feyo muito bem
Escreveu o Provedor do Leitor do «Público :Caça às bruxas
«(...) Resta o modo como este caso foi tratado, no plano jornalístico, pelo conjunto da comunicação social.
Acredito que todos os jornalistas que noticiaram o assunto respeitaram o princípio do contraditório e tentaram, em vão, ouvir Igor Khashin e a sua mulher, Júlia Khashina. Não é possível obrigar alguém a falar e o silêncio de uma das partes não pode ser impeditivo da publicação da notícia. Mas o facto é que a opinião pública só pôde conhecer a defesa do casal russo depois da muito necessária entrevista do jornalista Francisco Alves Rito, divulgada na edição do PÚBLICO de 13 de Maio de 2022.
É certo que o silêncio dos visados podia ser interpretado de várias formas. Para os profissionais da suspeita, ele era sinónimo de culpa. Mas, numa segunda análise, esse silêncio é compreensível. Se o casal tem familiares na Rússia, o que é que se esperava? Que condenasse o regime de Putin, expondo a família a represálias? Ou o regime de Putin não respeita os direitos humanos só quando isso dá jeito aos analistas? Há uma resposta de Igor Khashin que ilustra o dilema do casal: “Está a fazer-me uma pergunta política, mas eu não sou político. Na minha situação, é irresponsável apontar se estou dum lado ou do outro.”
Vejamos agora os indícios em que se basearam as notícias a denunciar o “mau comportamento” do casal russo. O primeiro elemento foi o facto de ele ser russo: “Eu sou russo, sim, sou russo. Se isso é crime, não sei.” Os exilados políticos e os emigrantes durante a ditadura salazarista sabem que a nacionalidade não é sinónimo de cumplicidade com o regime vigente no país de origem. Antes pelo contrário. A CIMADE (Comité Inter-Mouvements Auprès Des Évacués), uma organização ligada à Igreja Protestante, que apoiou os exilados e os emigrantes portugueses em geral, nasceu em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial. O seu propósito era acolher todos os refugiados, inclusive os cidadãos da Alemanha, com quem a França estava em guerra, que fugiam do regime nazi. Como muitos portugueses fugiram da ditadura. Como muitos russos fogem agora do regime de Putin. Rotular um homem pela sua nacionalidade é uma reacção chauvinista e primária. A solidariedade não tem pátria, nem pode ser encurralada atrás de fronteiras.
Um outro libelo acusatório foram os contactos do casal russo com a sua embaixada. Valha-nos o bom senso! Então os emigrantes portugueses por essa Europa fora, que quase sempre saíam do país a “salto”, não contactavam as embaixadas de Portugal onde viviam e trabalhavam? Como é que podiam obter um passaporte que lhes permitisse viajar, ainda que só de regresso a Portugal? Ou mandar ir a mulher e os filhos? Ou renovar um bilhete de identidade ou uma carta de condução já caducados? Eram por isso e outro tanto apoiantes de Salazar ou informadores da PIDE?
Igor Khashin e a mulher recolhiam os dados pessoais dos ucranianos que chegavam a Setúbal e outra informação sobre o agregado familiar. Mas não era isso necessário para preencher os formulários e instruir os processos individuais, independentemente da nacionalidade dos estrangeiros? Depois, há as conversas entre os Khashin e os ucranianos. Elas seriam suspeitas. Suspeito seria que essas conversas não existissem. Quando um refugiado ou emigrante “cai” sozinho num país onde não tem qualquer contacto, de que tudo ignora, nomeadamente a língua, a sua primeira reacção, humana reacção, é desabafar e contar as suas experiências e angústias. “As pessoas falavam de tudo e de mais alguma coisa”, confessa Igor Khashin. Ao que parece, ele e a mulher também são culpados de ter falado com os ucranianos…
Não sei se os Khashin são espiões ao serviço da Rússia ou não. Ninguém sabe, ao certo. E se não forem? No ambiente de caça às bruxas que se gerou na sequência da guerra na Ucrânia, é indispensável separar o militantismo do jornalismo e a imprensa responsável da “Maria vai com as outras”.
Segundo a velha máxima jornalística, notícia não é um cão que morde um homem, é um homem que morde um cão. Ainda assim, para que haja notícia, é preciso que o homem tenha mordido o cão, de facto. »
Sobre o mesmo assunto, António Filipe no «Expresso»
«Seja como for, o manual dos inquisidores é para ser levado à letra e a sentença já foi lida. Os cidadãos são russos, ponto final. A Câmara de Setúbal “é comunista”, ponto final parágrafo. Não é preciso provar nada. Basta insinuar, acusar, condenar e executar a sentença. Enquanto não se apurar nada, é preciso continuar a investigar. Se nunca se apurar nada, é porque alguém conseguiu esconder alguma coisa e nesse caso, há que manter o princípio: in dúbio contra o réu.»