Embora tudo isso possa ser muito pouco importante se, no momento em que estas linhas conhecerem a luz do dia, já milhares de toneladas de bombas semearem a morte e a destruição no Iraque, compreenda-se que insistamos em algumas evidências - porventura acessórias mas com significado - que se desvendaram nos últimos meses em torno da preparação desta agressão.
A primeira evidência é, desde logo, a de que se, por acaso ou bambúrrio, a Administração norte-americana, em vez de apontar baterias políticas e militares contra o Iraque, tivesse definido um qualquer outro alvo prioritário ou tivesse dado outra definição do «eixo do mal», todos os prosélitos em Portugal e no mundo da cruzada contra o Iraque não teriam escrito nem dito uma palavra nos últimos meses sobre os «perigos» que o Iraque representava, como não disseram nos anos que precederam imediatamente o 11 de Setembro de 2001.
De facto, ninguém acredita que se a Administração Bush tivesse escolhido outro «mau» para a fita, no que toca a Portugal, de Vasco Graça Moura a Luís Delgado, de Vasco Rato a José Manuel Fernandes [então director do Público], do pessoal quase todo do «Independente» a Henrique Monteiro, andassem todos a falar dos vastíssimos arsenais de armas químicas e biológicas de que o Iraque supostamente dispõe (mas que centenas de inspectores em centenas de visitas não descobrem) ou das supostas ligações do Iraque ao terrorismo internacional (que nenhuns generosos milhões de dólares ainda ajudaram a «provar»).
E, assim sendo, tem-se necessariamente de concluir que, aqui e lá fora, a maior parte dos defensores, em termos de opinião publicada, da bondade, legitimidade e carácter imperioso da agressão norte-americana ao Iraque o fazem não por um juízo soberano e livre sobre o estado do mundo e os seus perigos mas porque há que seguir a agenda, as opções, os interesses e as ordens do inquilino da Casa Branca e do sistema que protagoniza.
A segunda evidência, obviamente tributária da primeira, é o peculiar entendimento que os defensores da guerra, ao longo dos últimos meses, demonstraram ter seja do direito internacional (quase tratado como velharia sem préstimo) seja das organizações internacionais e designadamente da natureza e papel da ONU.
Para já não falar daqueles que repetidas vezes falsificaram o verdadeiro texto da Resolução 1441, basta dizer que, sem corarem de vergonha, não foram poucos os que, sempre como os EUA sustentavam, se esfalfaram a proclamar que aquela Resolução contemplava a «automaticidade do recurso à força» (com dispensa de qualquer nova apreciação ou Resolução do Conselho de Segurança).
E isto apesar de ser evidente que o texto não autorizava tal concepção e de se saber, pelos próprios documentos oficiais da ONU, que essa concepção foi «rejeitada pela maior parte das delegações» no debate que o Conselho de Segurança realizou em 16 e 17 de Outubro de 2002, a pedido da África da Sul que, em nome do Movimento dos Não-Alinhados, tinha manifestado o temor de que uma nova Resolução impusesse «deliberadamente ao Iraque modalidades de cooperação impossíveis de aceitar ou de satisfazer» e tivesse em vista «caucionar, de facto, o recurso à força».
E foi também por deliberada submissão a estas doentias concepções que foi possível ver, semana após semana, tantos comentadores alinhados pela guerra a sentenciarem, sem se desmancharem, que a referência da Resolução 1441 às «graves consequências» a que o Iraque se exporia em caso de incumprimento daquela Resolução significava, sem margem para dúvidas, a atribuição aos EUA de um mandato para desencadearem a guerra contra o Iraque.
A terceira evidência é que os EUA nunca agiram de boa-fé nas Nações Unidas e sempre a olharam como o útil e conveniente tabelião para dizer amen à sua estratégia e às suas opções e que os EUA se arrogam o direito de se armarem em exclusivos juizes e intérpretes autênticos das Resoluções da ONU e do seu cumprimento, e que os EUA estavam tão empenhados nas inspecções pelo lado das fabulosas possibilidades de recolha de informações e de espionagem quanto dispostos a desprezar de forma acintosa todos os testemunhos, relatórios e opiniões dos inspectores que não coincidissem com os seus pontos de vista.