há oito ou dezoito anos !
na 1ª página do DN
No passado sábado, a propósito da visita do primeiro-ministro e respectiva comitiva a Angola, o Expresso ostentava
em 1ª página o título “Angola – Sócrates leva 1/3 do PIB” e,
similarmente, o PÚBLICO, embora com a discrição de uma página interior,
também oferecia aos seus leitores o título “Sócrates leva um terço do
PIB a Angola”.
Partindo
do princípio de que, apesar do prometido e bem-aventurado “choque
tecnológico”, nas redacções dos jornais ainda não haverá nenhuma máquina
que converta expeditamente um certo número de grandes empresários em
fatias do Produto Interno Bruto, não é arriscado prever que a conversão
apresentada em simultâneo nos títulos dos dois jornais tenha partido de
informações do gabinete do primeiro-ministro ou da “central de
comunicação” do Governo (esperando-se que, a esta hora, Santana Lopes já
tenha percebido que os espertos fazem as coisas e não se põem a
legislar sobre elas).
Passando
ao lado de memoráveis simplificações jornalísticas (do género “a
construção civil portuguesa passará igualmente a próxima semana em
Angola”) que se seguiram à inicial conversão, por fontes governamentais,
de 77 grandes empresários em 1/3 do PIB nacional, cumpre agora
sublinhar que uma tal concepção ou critério significa pensar, sentenciar
ou instituir que os grandes empresários são os únicos que contribuem
para o PIB de Portugal.
E
que, em consequência, em termos de contribuição para o PIB, não passam
de meros verbos de encher, para não dizer coisa pior, as operárias, os
agricultores, as empregadas de escritório, os trabalhadores dos
serviços, as secretárias, os engenheiros, as juristas, os economistas e
por aí fora, enfim todas aquelas variadas profissões e actividades que
representam esforço e trabalho humanos e que, até aqui e pelos vistos
erradamente, se supunha participarem, directa ou indirectamente, na
criação da riqueza nacional.
Se assim é, há então um conjunto de propostas, de inquietações e de interrogações a que honestamente não me posso furtar.
Em
primeiro lugar, creio que deveria merecer séria ponderação se não se
justificaria uma revisão constitucional (a oitava!) para que, um pouco
como se faz com as viagens do Presidente da República ao estrangeiro, a
Assembleia da República tivesse de autorizar prévia e expressamente o
primeiro-ministro a levar partes do PIB a viajar lá fora, sempre que não
se tratar de actividades exportadoras.
Em
segundo lugar, sabendo-se como os ciúmes podem envenenar relações e
provocar ralações, o Governo do PS, se ainda não o fez, devia dar uma
rápida garantia pública ao segundo terço do PIB de que será levado pelo
primeiro-ministro à América Latina e que ao último terço caberá ser
transportado aos “países emergentes” da Ásia, com regresso pelo Pacífico
e escala em Aspen, na Disneylândia e, para disfarçar, em Silicon Valley (um dia em cada sítio).
Em
terceiro lugar, se 77 empresários é igual a 1/3 do PIB, isso significa
que, durante os quatro dias da sua visita a Angola, o PIB criado nesse
período em Portugal descerá um terço em relação ao que seria normal, e
não só não vejo como é que isso contribui para a tão ansiada e anunciada
“retoma” como acho mesmo tratar-se de uma atitude absolutamente
irresponsável.
Em
quarto lugar, porque com a saúde da nossa economia não se brinca, só
espero que o dr. Correia de Campos se tenha lembrado de mandar o tal 1/3
do PIB à prudente vacinação no Instituto de Higiene e Medicina
Tropical.
E,
em quinto e último lugar, não sendo Portugal um país produtor de
diamantes, se um terço do nosso PIB cabe num avião então a crise está
para durar e lavar e vão ter de ser revistas em enorme baixa todas as
previsões da UE, da OCDE, do FMI e do Banco de Portugal, cujo isento
Governador, de passagem o refiro, apesar de estarmos em Abril, e ao
contrário do que sucedeu o ano passado, ainda não divulgou nenhum estudo
quantificando o défice orçamental que se vai registar em 31 de Dezembro
próximo.
Alguns
peritos numa disciplina que se poderia chamar a aborrecida
“previsibilidade” do “discurso” de pessoas com a minha colocação
política e ideológica devem estar a pensar que, fatal como o destino, a
seguir virá certamente a acusação de que, também nesta matéria, o PS
copia os partidos da direita e ainda alguma evocação ou citação de Marx e
da sua obra, seja na modalidade da terrível “vulgata”, seja em termos
mais complexos e elaborados e, por isso mesmo, mais defendidos da
crítica de primarismo ou esquematismo.
Lamento
sinceramente a surpresa que possa causar, mas a verdade é que nem uma
coisa nem outra são apropriadas, úteis ou necessárias neste contexto de
uma despretensiosa reflexão sobre a viagem de 1/3 do PIB a Angola pela
mão firme, embora algo abusadora, do primeiro-ministro.
Com
efeito, seria muito injusto acusar o Governo do PS de, ao “vender” esta
concepção ou ideia de que grandes empresários igual a PIB ponto final
parágrafo, estar a copiar o PSD ou o CDS-PP, pela simples razão de que,
neste campo e em outros, o PS tem o seu próprio património de dislates e
enormidades.
Na
verdade, o que as fontes governamentais, certamente próximas do
primeiro-ministro, fizeram foi apenas copiar declarações públicas do
então primeiro-ministro António Guterres, na sua visita ao Brasil em
fins de Abril de 1996, que – além desse “must” que são as clássicas
referências à “nata” empresarial - também
veicularam a ideia de que a comitiva de grandes empresários que o
acompanhava representava 40% do PIB, o que já na altura me pareceu uma
atitude muito pouco católica.
E,
por fim, é altura de explicar que evocar ou citar Karl Marx a respeito
deste assunto seria quase o mesmo que pedir a Einstein que participasse
numa discussão sobre erros de arbitragem em jogos de futebol da Super
Liga portuguesa.
É
muito mais apropriado, embora pessoalmente deveras doloroso, concluir
esta digressão afirmando que, por comparação com as concepções que
inspiram estas identificações exclusivas dos grandes empresários com o
PIB, até a encíclica papal Rerum Novarum, publicada há 115 anos por Leão XIII, faz figura de documento bastante progressista e avançado.
É, sem dúvida, um triste e inquietante sinal dos tempos que o tenha de escrever quando corre o sexto ano do terceiro milénio.