"Ciência certa" mas
atrasada pelo menos 9 anos !
«Não sei até que ponto o dia seguinte da cimeira desta semana vai ser como os dias seguintes das cimeiras europeias dos últimos anos. Mas algo sei de ciência certa: a Europa teve mais olhos que barriga quando se lançou na aventura do euro e, agora o risco de indigestão é um também um risco de colapso. »
José Manuel Fernandes, hoje no Público
E pronto, dou alvíssaras generosas e fartas a quem for capaz de descobrir algum texto de José Manuel Fernandes onde, durante os vários anos (de 1995 a 2002) em que se discutiu a criação do euro, a tenha considerado uma aventura».
E, de ciência certo o que posso garantir, com a máxima autoridade, é que não foi José Manuel Fernandes que escreveu a crónica seguinte em torno de uma célebre e muito canónica afirmação de António Guterres sobre a criação do euro.
Cristo e a moeda única
No passado sábado, três vezes olhámos e lemos a entrada da notícia do «Público» sobre a Cimeira de Madrid e não queríamos acreditar. Pior do que isso, fomos assaltados por aquela difusa mas terrível sensação de, por um momento, ou sentirmos que não somos deste mundo ou sentirmos que o bom senso, a noção do ridículo, o sentido das proporções e o espirito crítico já seriam puros vestigios arqueológicos de tempos remotos.
Mas era mesmo verdade. Desenvolvendo uma destacada referência da primeira página, a citada notícia arrancava mesmo como segue: « " Euro, tu és o euro e sobre este euro edificaremos a União Europeia ". Foi com esta afirmação que o primeiro-ministro português saudou ontem o acordo dos líderes europeus sobre o nome da moeda única europeia. A imagem , recordando a conversa entre Jesus Cristo e São Pedro - "Pedro, tu és Pedro e sobre ti edificarei a minha Igreja " - não podia ser mais apropriada: o baptismo do "euro" constitui sobretudo um acto de voluntarismo e de fé na moeda única ».
E como se isto já não bastasse para nos atirar para um indisfarçável mal-estar, no dia seguinte o « Público » fazia outra notícia sobre a Cimeira arrancar assim : «" Era bom que ele hoje dissesse uma frase como a de ontem (sexta-feira), foi muito bonita" - comentava ontem um jornalista espanhol ainda surpreendido com a referência do Primeiro -Ministro português aos Evangelhos com que ilustrou o nascimento do euro » .
Deixamos ao cuidado de cada um - seja crente, agnóstico ou ateu - a avaliação sobre o bom ou mau gosto de parafrasear Jesus Cristo a respeito da moeda única. Deixamos ao cuidado de cada um reflectir sobre o significado de a ânsia de notoriedade europeia deste estreante dos Conselhos Europeus o ter levado ao ponto de adaptar e instrumentalizar «a palavra do Senhor ».
Por nós, apenas nos apetece observar duas coisas um pouco diferentes: a primeira, é que, dado que o Eng. Guterres recorre a citações bíblicas com uma frequência absolutamente incomum em qualquer católico, é de suspeitar que essas citações estejam para o seu discurso como as anedotas ou piadas estão para o discurso dos políticos norte-americanos, ou sejam, são estudadas, premeditadas e já vão no bolso do casaco; a segunda, é que a imagem a que Guterres recorreu, mais do que voluntarismo ou fé na moeda única, parece sim desvendar que na mundivivência do Eng. Guterres a religião da moeda única, do federalismo contra as soberanias nacionais e da ditadura dos mercados financeiros, da competitividade e da globalização contra os direitos sociais deve estar em àspera peleja territorial com o seu tão exibido catolicismo.
A verdade é que bastaram uma frase deste tipo, a «nuance» de uma alegada insatisfação quanto ao desemprego e meia dúzia de «briefings» com a comunicação social para que, por exemplo, o «Expresso» viesse dizer que « Portugal viu triunfar em Madrid quase todas as posições que trazia para a Cimeira dos Quinze » ( mas, com licença, eram boas?) , que a Cimeira de Madrid «marca uma viragem radical na abordagem portuguesa da política comunitária » ( mas, com licença, em quê ? ).
Em vésperas de Natal, a pensar em todos os que andam entretidos a fugir da realidade, apenas apetece uma citação de Mateus colhida em epígrafe de um grande romance de Redol: «Deixai-os: cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco ».
(in Avante! de 2.11.1995)