... as traições da memória
A dado passo da reportagem de Judite de Sousa transmitida ontem pela TVI sobre «Álvaro, Eugénia e Ana- os 100 anos de Cunhal» aparece Miguel Sousa Tavares a relatar uma entrevista feita por si a Álvaro Cunhal na RTP e a contar que eu próprio, Vítor Dias, que acompanhava o Álvaro, no final da entrevista e na frente deste, fiz a Miguel Sousa Tavares um série de comentários de descontentamento sobre a forma como a entrevista tinha corrido, com perguntas manipuladoras, etc., etc. Mas que, já na sala de (des)maquilhagem, sem a minha presença naturalmente, Cunhal lhe teria tido que tinha achado as perguntas muito interessantes e corajosas.
Pelo meio, é de referir acessoriamente que Miguel Sousa Tavares me classificou com um «estalinista puro» mas isso é o menos porque há muitos anos já me chamou «o maior estalinista da informação portuguesa» ( na revista Visão) e também chegou mesmo a escrever que eu tinha «cara de guarda de Gulag» ( no Semanário em Agosto de 1991).
Ora, com a ressalva de que, passados tantos anos, ninguém está completamente a salvo das traições da memória, o que quero afirmar é que é absolutamente absurdo e impensável que, na frente de Álvaro Cunhal, eu desatasse a desancar um jornalista que o tinha entrevistado, por simples razão de educação e de não me substituir ao secretário-geral do meu partido em matéria de reacções à sua entrevista.
Aliás, acompanhei Álvaro Cunhal em numerosas entrevistas televisivas e radiofónicas e faltaria saber se algum dos entrevistadores (Margarida Marante já cá não está infelizmente) é capaz de se queixar do mesmo que Miguel Sousa Tavares quanto a mim se queixou.
Entendamo-nos : não é que, em regra, eu gostasse da maneira como muitas entrevistas, sobretudo na televisão, eram feitas a Álvaro Cunhal, designadamente das quase sacramentais perguntas inocentemente finais sobre a União Soviética; a questão, insisto, está em que eu, terminadas as entrevistas, rompesse com as regras de sobriedade e educação porque sempre me pautei nas relações com jornalistas e, por maioria de razão, quando acompanhava o meu camarada Álvaro Cunhal.
Mas já que estamos no terreno de memórias, passados tantos anos, quero contar-vos uma história que tenho com Miguel Sousa Tavares e de que ele certamente não se lembra ou então dirá que estou a inventar: é que, na noite de 7 de Dezembro de 1980, dia da eleição para Presidente da República, disputada entre Ramalho Eanes e Soares Carneiro, Miguel Sousda Tavares e eu encontrámo-nos à entrada da Fundação Gulbenkian, onde então decorriam as noites eleitorais. E, quando nos cumprimentávamos, Miguel Sousa Tavares disse para mim: «Ó Vítor Dias, lá ganhámos, hem ?». Ou seja, nessa noite e nessa altura em que o PCP contribuira decisivamente para a derrota de Soares Carneiro, Miguel Sousa Tavares esqueceu-se que o Vítor Dias era «um estalinista», adivinhem os leitores porque terá sido..
P.S.: Nestas suas mesmas declarações à reportagem da TVI, M.S. Tavares contou a vez em que encontrou Álvaro Cunhal num supermercado no Algarve com um melão na mão. Mas quando a contou pela primeira vez, no Semanário há mais de 20 anos, tratava-se de uma melancia. Portanto, quem sabe se desta vez , tal como a melancia, também não fui vitima das confusões da memória de Miguel Sousa Tavares.