Um péssimo ponto de partida
Ao ler a lista das pessoas que já subscreveram o «Manifesto para Uma Esquerda Livre», várias das quais aliás minhas amigas, sinto a necessidade de, depois deste breve comentário, voltar ao assunto. Assim:
Começo por formular o voto de que os autores e subscritores do Manifesto interiorizem e exteriorizem bem a ideia de quem assina manifestos públicos com este conteúdo e formulações, perante os comentários críticos que este receba, ultrapassem a tendência que há em todos nós para o melindre, a susceptibilidade e a irritação. E que tenham o «fair-play» de perceber que se podem escrever indirectamente que eu pertenço a uma esquerda da «inconsequência» então eu também tenho direito de lhes responder pelo menos com palavras tão directas e fortes como as que usaram.
Para o caso de poder haver dúvidas, esclareço que nada do que eu escreva sobre o citado Manifesto colide com a minha convicção de que, na sua imensa maioria, os seus subscritores são cidadãos em regra movidos por preocupações respeitáveis e intenções generosas e que se deve contar com a sua contribuição na complexa, árdua e muito difícil (não sei é se todos terão consciência da justeza destes adjectivos) luta pela consolidação de uma política alternativa e construção de uma alternativa política à esquerda.
Devo agora acrescentar que o meu ponto não está nas iniciativas que tencionam anunciar ou nas propostas sobre os problemas nacionais que venham a apresentar mas sim, e para já exclusivamente, no teor do Manifesto que apresentaram e no que ele revela sobre os caboucos doutrinais ou conceptuais desta iniciativa política. Simplificando, creio que em boa verdade este conjunto de cidadãos podia ter escrito ou assinado um manifesto que simplesmente anunciasse um desejo de participação cidadã em torno de diversas causas ou temas ou como contribuição para fortalecer o movimento de luta, intervenção e de proposta já existente. Mas não foi isso que aconteceu pois os autores do Manifesto escolheram para matriz fundacional deste seu projecto um espécie de forçada terraplanagem do que já existe e se move à esquerda (releia-se aqui uma recente afirmação de um dos autores do Manifesto), ideia que percorre todo o manifesto, desde logo a começar o título que comporta a ideia de que há uma «esquerda» que não é livre. E, neste quadro, no Manifesto tudo valeu: desde a amálgama absurda e nada séria que o «esquerda» no singular induz até à ideia de que até hoje ainda ninguém à esquerda apresentou «alternativas concretas e decisivas para
romper com a austeridade e sair da crise» passando por um tacticismo que leva a furtar, com infinita caridade, o PS às suas enormes responsabilidades. Ironia da história é que quem tanto diferente do que há quer ser, tirando isto, quase tudo o que escreve no Manifesto de natureza vagamente programática parece escolarmente copiado dos discursos do PCP, do BE e de algumas personalidades do PS. Os autores deste Manifesto até podem vir a querer que os seus termos concretos sejam rapidamente esquecidos e até podem desejar pôr rapidamente a tónica principal na mobilização de cidadania ou nas iniciativas que almejam promover. Mas, desculpem lá, o Manifesto existe, por alguma razão foi escrito da maneira que foi e ninguém se pode queixar que olhares e pensamentos exteriores à iniciativa o vejam como uma espécie de papel de tournesol.
Chamando sempre a atenção para o texto sublinhado no início ponto anterior, devo agora acrescentar que não me causa admiração que tantas e por vezes tão ilustres personalidades possam ter subscrito um Manifesto com semelhante conteúdo e formulações. Bem pelo contrário considero que essa atitude, que não reputo de sinal positivo e de que já havia indícios anteriores, é um sintoma dos conturbados e interpelantes tempos que vivemos e revela um entrecruzamento das sequelas da crise em curso com processos de alterações nos sistemas de valores, referências ou afinidades político-ideológicas. Embora isso esteja longe de esgotar a questão, o que acontece é que, em geral, os signatários de um Manifesto com este teor ou são membros ou simpatizantes de um partido à esquerda da direita e estão descontentes com a sua orientação actual ou são independentes que, em rigor, não se reconhecem ou sentem representados pelo PS, pelo PCP e pelo BE e que, em diversos momentos e situações, são muito cativáveis para ou sensíveis a apelos genéricos a uma «unidade das esquerdas» (incluindo o PS) que saltam por cima de muita coisa, ou seja e sem ofensa, assentam numa espécie de amnésia e perdões de conveniência que creio ser fruto de uma grande dificuldade intelectual e política em lidar com a complexidade, incerteza e aspereza que, a meu ver marca a questão da alternativa de esquerda em Portugal.
Nestas circunstâncias, se é essa a sua atitude ou sentimento, para além da sua sempre bem-vinda intervenção em causas e lutas de diversa natureza, creio honestamente que o caminho coerente que devem percorrer é ou lutarem democraticamente dentro dos seus partidos pela correcção das suas orientações ou, se mantêm a assumida diferenciação com as esquerdas que há e que está bem expressa no Manifesto, no caso de serem independentes deitarem mãos à obra da construção de forças políticas isentas dos defeitos ou erros das já existentes o que introduz apenas o «pequeno problema» de conseguirem um mínimo de agregação político-ideológica.
Por fim, só dizer que, sem dúvida que, por todas as razões e mais algumas, precisamos em Portugal da mais vasta agregação e convergência à esquerda de múltiplas e diversificadas contribuições, patrimónios e capacidades de luta e de proposta. Mas, dizendo isto, tenho também de dizer, por dever de sinceridade e de lealdade, que o texto do Manifesto, desejava que fosse por infelicidade momentânea, em nada serve esta necessidade e aspiração.
Adenda em 17/5:
Relativamente á apresentação pública hoje ocorrida do «Manifesto», refere o Público online:
(...)
Depois do que já escrevi sobre o assunto (até aqui sem resposta digna de nota) só quero acrescentar agora:
- quanto à afirmação do estimado José Vítor Malheiros, só quero recomendar que antes de começarem a obrigar os partidos «a tomar posição», pelo menos quanto ao PCP, talvez convenha consultarem o seu sítio não vá dar-se o caso de o interpelarem sobre coisas sobre as quais está farto de se pronunciar;
- quanto à afirmação de Rui Tavares de que «dentro dos partidos não há democracia», só quero lembrar-lhe a evidência facilmente demonstrável de que, quanto mais informal ou inorgânico for um movimento, menos democracia e prestação de contas há nele e mais os verdadeiros poderes de decisão estão concentrados num vúcleo muito restrito de pessoas.
Dito isto, agora vou ali à ervanária para ver se também há chá contra a arrogância porque tenho umas prendas dessas para dar.