Uma senhora pazada
de terra sobre tantos outros textos
«(...) Como escreveu Moshe Lewin (O Século Soviético, 2005), “as
representações do sistema soviético” reproduzidas no Ocidente,
“largamente influenciadas pelas realidades ideológicas e políticas de um
mundo bipolar”, baseadas em “juízos fundamentalmente ideológicos”, têm,
desde sempre, impedido avaliar com rigor a dimensão social e cultural
do projeto soviético. A sobrepolitização da análise do sistema soviético
levou — e leva ainda — a que se “estude a URSS exclusivamente no seu
estatuto de Estado ‘não democrático’ e se discuta o que não era, em vez
de tentar compreender o que era”.
Na era do medo e do choque como instrumentos de gestão política
(Naomi Klein), é revelador que a patologização das revoluções como
processos de mudança tenha desenterrado as formas mais preconceituosas
de encarar a história. Entre os piores vícios de análise das revoluções
que por aí campeiam neste centenário de 1917 estão, antes de mais, essa
essencialização da violência como caraterística genética da Rússia e da
sua cultura, ou a ideia de que as revoluções, mais do que resultado da
ação e da tomada de posição de grandes atores coletivos e da intersecção
de tendências profundas (que maçada ter de as estudar...), são produto
da manipulação de revolucionários profissionais, de líderes
sobre-humanos (Lenine, Estaline) descritos como protagonistas da
violência ideocrática, e, portanto, atores sociais desligados do
conjunto da sociedade. Da mesma forma que as teses tradicionais da
sovietologia ocidental (sobretudo Robert Conquest, 1968) e o próprio
discurso oficial da URSS pós-estalinista e da Rússia pós-soviética
elevaram Estaline ao altar de “tirano sanguinário empenhado em conseguir
o poder total”, dessa forma “esquivando-se ao desafio narrativo de ter
de dar conta da variedade das vítimas e dos perpetradores e desentranhar
a complexa história da violência política na URSS” (James Harris, O Grande Medo,
2016), o discurso que se tem produzido no centenário continua a falar
da “Revolução de Lenine”, que, por essa mesma autoria individual, não
teria sido “uma marcha de forças sociais abstratas e de ideologias”
(Orlando Figes, A Tragédia de Um Povo, 1996). Se há atitude que
diz muito do ciclo de desdemocratização em que vivemos é, aliás, este
regresso da velha abordagem que procura o cabecilha, em vez de entender o
movimento. »