Cumprindo o que aqui anunciei, e assumindo que a muitos isto poderá parecer uma conversa entre adiantados sexagenários, proponho-me hoje enunciar algumas considerações que reputo úteis em torno de interpretações e qualificações que desde há 40 anos, volta não volta, são feitas sobre a comunicação apresentada ao 3º Congresso da Oposição Democrática em Abril de 1973 por José Medeiros Ferreira, então exilado na Suiça, e intitulada «Da Necessidade de um Plano para a Nação».
Começo por esclarecer, e este ponto deverá estar sempre presente na leitura dos outros pontos, que nada do que vou escrever visa declarações feitas pelo próprio autor da comunicação (ou tese) e reafirmo que aquele trabalho de José Medeiros Ferreira tinha grande valia e interesse e representou de facto uma novidade, designadamente pela abordagem numa iniciativa promovida pela oposição democrática do possível papel das Forças Armadas na solução do problema político português (ler essa parte do texto de J.M.F. aqui em «os papéis de alexandria»), embora a tese tenhas outras componentes igualmente importantes. Na verdade, estas minhas observações visam sim certas simplificações que ao longo do tempo vieram a ser feitas por terceiros em relação à tese de J.M.F., a atribuição que lhe foi feita de um carácter «premonitório» em relação ao que ocorreu no 25 de Abril de 1974 e as críticas mais ou menos explícitas que, nesse quadro, viriam a ser feitas ao 3º Congresso da Oposição Democrática, por nas suas Conclusões Políticas não ter absorvido aspectos fulcrais da comunicação de José Medeiros Ferreira no que toca ao eventual papel das Forças Armadas. E informo que a expressão mais caústica desta crítica ao 3º COD partiu, logo a seguir à queda do fascismo, de um ácido mas estimável jornalista que, salvo erro no «Expresso», escreveu qualquer coisa do género « que grande Congresso aquele que, salvo uma tese de José Medeiros Ferreira, não foi capaz de prever o que tão decisivo viria a acontecer um ano depois». Em resumo, esta e outras opiniões hipervalorativas da tese de Medeiros Ferreira reclamam, a meu discutível ver, alguns elementos de informação mais rigorosa e de uma mais ampla contextualização.
Desde logo, cumpre-me adiantar que este tipo de críticas ao 3º COD são tão injustas como injusto seria alguém vir dizer que Medeiros Ferreira na sua comunicação fala sempre da instituição Forças Armadas (quando não foram estas que fizeram o 25 de Abril mas sim um movimento clandestino de oficiais do quadro e de patentes intermédias que desrespeitaram e subverteram a cadeia de comando da instituição), que não previu de forma explícita que a iniciativa pertencesse a esses militares ou que, na sua análise dos efeitos da guerra colonial sobre as Forças Armadas, não fizesse referência aos desgaste sofrido pelos oficiais do Quadro Permanente pelas suas sucessivas comissões na guerra (fenómeno que a minha passagem pela Repartição de Oficiais do Ministério do Exército em 70 e 71 já me havia permitido intuir).
Acontece também que uma ou outra opinião parece não ter em conta que o 3º Congresso da Oposição Democrática era sobretudo um Congresso de combatentes antifascistas e não um Congresso académico ou de ciência política e muito menos um Congresso de bruxos ou adivinhadores políticos e que o seu objectivo fundamental era definir orientações para a sua própria intervenção, isto é para as tarefas que lhe cabia desenvolver, sem ter a pretensão, que seria ridícula e atrevida, de o movimento democrático (relativamente legal nos «períodos eleitorais» e semi-legal no resto do tempo), assente numa mera coordenação de estruturas distritais, se apresentar como uma instância dirigente de toda a resistência e luta antifascistas em Portugal.
Depois considero indispensável lembrar que a questão do papel das Forças Armadas no derrubamento do regime - tratada naturalmente em termos velados na comunicação em causa - não nasceu com essa comunicação de Medeiros Ferreira ao 3º COD. Indo propositadamente mais atrás do que o «Rumo à Vitória», quero lembrar que já num documento público de 1961 Álvaro Cunhal escrevia :«Em vez de insistir na possibilidade na possibilidade e proximidade da solução pacífica por «desagregação irreversível» do regime, o Partido deve apresentar ao povo português e às forças democráticas, como caminho para o derrubamento do fascismo. o levantamento nacional. E um levantamento nacional vitorioso terá de adquirir a forma de poderosas manifestações de massas, incluindo eventualmente uma greve geral política, terá de contar com o apoio duma parte das forças armadas ou pelo menos da neutralidade de importantes sectores dessas forças e deverá ter como objectivo derrubar a ditadura pela força caso ela resista pela força. Para um levantamento nacional vitorioso, o problemas das forças armadas adquire especial importância. É perigosa fantasia pensar que um movimento popular, por muito vasto e poderoso que seja, pode provocar o derrubamento da ditadura fascista se as forças armadas mantém a sua coesão, unidade e combatividade ao serviço do governo fascista. (...) A ditadura fascista, não pode ser derrubada se uma importante parte das forças armadas não a abandona, se uma importante parte dessas forças não se passa para a Oposição e se uma outra importante parte não acusa vacilações que impeçam a asua utilização pelo governo fascista. O descontentamento nas forças armadas, o esclarecimento político de sectores importantes dessas forças, a organização democrática e partidária de oficiais, sargentos e soldados, a determinação duma parte para apoiar a comparticipação no movimento nacional contra a ditadura fascista e a resistência de outra parte a servir para jugular tal movimento, são condições para um levantamento nacional vitorioso.» (p. 571 e 572 de «Álvaro Cunhal - Obras Esolhidas II- 1947-1964»).
Considerando com atenção a anterior citação, talvez se possa compreender melhor que a minha primeira reacção ou sensação ao ler, ainda antes dos dias do Congresso, a comunicação de Medeiros Ferreira, tenha sido de surpresa por, conhecidas as suas divergências naquela época com o PCP, ela se aproximar em larga medida daquela tese fundamental do PCP enunciada há tantos anos. Não porque Medeiros Ferreira, na sua tese ao 3º C.O.D. , viesse subscrever a ideia do PCP do «levantamento nacional» mas porque nela se afirmava que «Portugal encontra nas suas classes trabalhadoras o melhor veículo para a sua continuação como Estado independente e é desta força social que pode resultar um projecto global para a Nação ou pelo menos nela apoiado. (...) As classes trabalhadoras aparecem pois como a força social do futuro. No entanto, uma instituição existe no presente que forçosamente estará no caminho das forças democráticas, seja para impedir o seu desenvolvimento seja para apoiá-lo. Mas não se pode fazer de conta que ela não existe. Trata-se da Forças Armadas.» Entretanto, e ao mesmo tempo, Medeiros Ferreira não deixava de formular uma compreensível interrogação: « As Forças Armadas para além da função nacional de defesa do território, serão sensíveis às lutas que se desenvolvem no corpo da sociedade portuguesa ? A tensão nelas existente entre o todo Nação e as partes constituintes desta que são as classes sociais levará ao aparecimento de uma um filosofia económica e social sobre a sociedade portuguesa capaz de permitir o apoio ao avanço de estruturas socializantes ?». E depois acrescentava com irrepreensível honestidade : « Não estamos aptos a fornecer resposta definitiva a tais interrogações».E Medeiros Ferreira formulava ainda uma lúcida e séria advertência :« E da situação óptima que seria a das classes trabalhadoras e demais forças democráticas inspirarem e fortalecerem o Exército, chega-se à possibilidade de se vir a assistir a fenómeno contrário: o do enquadramento das classes trabalhadoras pelo Exército. E a experiência dos aldeamentos estratégicos, por si só, não é a a melhor garantia de democracia...».
Como se compreenderá, embora em termos compreensivelmente nunca excessivamente explícitos , esta parte da tese de José Medeiros Ferreira aproximava-se obviamente da questão da(s) via(s) para o derrubamento do fascismo. Ora tenho para mim que a qualquer comunista dominando razoavelmente a linha política do seu partido não seria difícil levar ao 3º Congresso de Aveiro uma comunicação que, com as artes de escrita necessárias, fizesse proselitismo da tese do PCP sobre o levantamento nacional e a insurreição popular armada que contasse com a participação de sectores das Forças Armadas. Mas creio que a nenhum tal passou pela cabeça, desde logo porque isso dificilmente poderia ser levado a conclusões do Congresso dado que seria uma matéria onde dificilmente haveria consenso entre as diversas componentes do movimento democrático. E também porque, mesmo que por absurdo o Congresso consagrasse explicitamente uma tal via , o movimento democrático que, como vimos actuava no plano legal ou semi-legal, se exporia de imediato a uma ferocíssima repressão e consequente desarticulação.
Apenas para que os leitores possam situar melhor o que antes se diz e compreender como a cultura política dos comunistas encarava estas questões, insisto no que já disse na sessão pública em Aveiro no passado dia 4 de Abril. Aí afirmei com efeito que, mesmo que em Abril de 1973 eu já soubesse sobre o movimento dos capitães o que só viria a saber no Outono/Inverno desse ano, o mais certo é que no próprio 3º C.O.D. eu não dissesse nem uma palavra sobre o assunto (a não ser que algum artista da escrita política encontrasse uma forma protegida de dar um discreto sinal de incentivo aos militares democratas), e isto, por um lado, por razões de segurança e, por outro, para que a criação de expectativas sobre a acção dos militares democratas não desviasse o movimento democrático das suas próprias tarefas e, desde logo, da grande batalha política da farsa eleitoral de Outubro desse ano.
E do mesmo modo, como ilustração desta mesma atitude fundada numa clara separação de tarefas e responsabilidades, só tenho orgulho e não vergonha em contar que, no final de Março de 1974, recebi de fonte de inteira confiança - um capitão meu amigo e companheiro da CDE de Lisboa- por um lado, a informação de que, apesar do 16 de Março, os preparativos de uma acção militar por parte do movimento dos capitães continuava e, por outro, até recebi uma informação detalhada sobre os pontos essenciais do Programa do MFA (ainda antes de serem alterados por Spínola). Ao que reagi, dizendo em breve que «está muito bem, é andar para a frente». Garanto que levei a informação a sério embora sem certezas absolutas sobre a sua concretização mas a verdade é que nos poucos dias que me restaram de liberdade (viria a ser preso a 6 de Abril), além de ter transmitido aquelas informações a âmbitos muitos restritos, passei mas foi todo o tempo a trabalhar nas linhas próprias de intervenção do movimento democrático, designadamente uma campanha contra o aumento do custo de vida a desenvolver no 1º de Maio desse ano. Tudo isto porque continuar a agir no plano que nos cabia em nada prejudicava a acção militar em preparação mas já ficar de braços cruzados à espera de acontecer algo que podia não acontecer seria um prejuízo para o trabalho e para a luta. Compreenda quem puder.