Triste sina a minha
Parece ser sina minha, ao longo de mais de 20 anos, ter de escrever quatro ou cinco vezes sobre os mesmos assuntos para pôr os pontos nos is em relação a deturpações, incompreensões ou, em alguns casos, atitudes de má-fé, que periodicamente se repetem.
Vem este desabafo a propósito de um post da historiadora Raquel Varela no «cinco dias» onde veio relatar - e fez bem - a história de um conjunto de jovens oficiais do quadro (R.V. identifica-os como milicianos mas ao mesmo tempo diz serem tenentes e terem estado na Academia Militar) que resolveu desertar por oposição à guerra colonial.
Até aqui tudo bem não fora o caso de, como tantas vezes acontece sempre que se fala de deserções face à guerra colonial, Raquel Varela ter resolvido fustigar, deturpando-a, a orientação do PCP sobre essa questão, como se pode ver por estes parágrafos:
A este respeito, fiquem então mais uma vez as seguintes observações essenciais:
Não creio que abone ninguém e muito menos uma historiadora - a quem reconheço tantos méritos quantas ideias feitas e distorcidas sobre o PCP - ser capaz de escrever que «o PCP teve de facto a política de impedir a deserção» quando até estão disponíveis online no Avante! clandestino centenas de referências e apelos do PCP às deserções e a sua valorização, número que ascende aos milhares se considerarmos também todo o conjunto de materiais de agitação e propaganda publicados pelo PCP desde que as guerras coloniais começaram até ao 25 de Abril de 1974.
Avante! de Setembro de 1966
Como Raquel Varela sabe ou não pode deixar de saber, o que acontece sim é que, na sequência de orientações anteriores e em seu aperfeiçoamento houve uma orientação consagrada numa Resolução especifica do Comité Central do PCP (ver na íntegra no final) de Junho de 1967 e publicada no Avante! de Setembro de 1967 em que se definia predominantemente para os militantes comunistas que «devem trabalhar para estimularem e organizarem as deserções. Mas eles próprios não devem desertar senão quando tenham de acompanhar uma deserção colectiva ou corram iminente perigo de ser presos em resultado da sua acção revolucionária». E aí mais se afirmava que «os militares comunistas devem continuar corajosamente o seu trabalho revolucionário nas forças armadas, tanto em Portugal como nas colónias, esclarecendo os seus companheiros, organizando os militares mais decididos e combativos, estimulando e organizando deserções e outras formas de acção protesto colectivos contra a guerra colonial, desde a resistência passiva até à sabotagem».
Do alto da sua cátedra blogosférica, Raquel Varela sentencia que «os frutos» dessa orientação «foram parcos ou nenhuns» certamente porque nunca leu nenhum dos testemunhos que alguns oficiais milicianos então militantes do PCP (e alguns hoje até são adversários vibrantes do PCP) deram à estampa na blogosfera sobre o que conseguiram fazer na guerra mas contra a guerra, certamente porque não conhece a importância das muito generalizadas atitudes de oficiais milicianos que, perante certas ordens ou operações militares superiormente determinadas, faziam o que se pode chamar «encanar a perna a rã», certamente porque é incapaz de compreender a influência política progressista que um número vasto de oficiais milicianos, a maioria deles experimentados nas lutas estudantis, veio a exercer sobre os oficiais do quadro permanente, favorecendo um seu processo de consciencialização política cujo fruto maior foi o levantamento militar (é assim que lhe continuo a chamar e não de «golpe») de 25 de Abril de 1974.
Do mesmo modo, não tenho grande esperança que Raquel Varela possa ser sensível ao argumento, a meu ver incontestável, de que se todos os militantes comunistas (e outros próximos do PCP) tivessem desertado isso teria debilitado enormemente as fileiras da resistência e da luta antifascistas dentro do próprio país e grandes jornadas de luta nos anos finais do fascismo não teriam tido a forte e marcante expressão que tiveram.
Aproveito para salientar que a prova de que o PCP tinha perfeita consciência da complexidade e da delicadeza da decisão de desertar ou não, até pela multiplicidade de circunstâncias e condicionalismos individuais e familiares, é que até eu conheço vários militantes comunistas que desertaram individualmente e depois, nos países onde se fixaram, se mantiveram integrados na actividade e militância partidária sem qualquer exclusão ou sanção.
Por fim, embora esta parte não diga respeito a Raquel Varela, recapitulo que em polémicas anteriores que travei sobre este assunto (a última salvo erro com Pacheco Pereira) sempre rejeitei e considerei uma enorme falta de grandeza e de sensibilidade humanas formular juízos sobre o que era mais corajoso - se desertar ou ir à guerra ( onde passaram e sofreram, é bom não esquecer, perto de um milhão de jovens portugueses).
Já a seguir, texto integral em nova dactilografia para se ler melhor e com sublinhados meus:
1.
Desde o inicio da insurreição dos angolanos, em Fevereiro de 1961,
muitos milhares de jovens abandonaram os seus lares, passaram a fazer
uma semi-clandestina ou emigraram para não serem incorporados nas
forças armadas e irem para as colónias combater numa guerra
injusta.
As
deserções constituem a expressão do amplo movimento de resistência
e protesto contra a política colonialista do governo fascista e em
particular contra a guerra colonial, uma forte afirmação do seu
espírito antifascista e da sua solidariedade para com os povos das
colónias.
O
Comité Central considera que é dever do Partido insistir, seja
pelo seu trabalho de agitação, seja pelo trabalho das suas
organizações, para que prossigam as recusas
em massa a prestar serviço militar e as deserções de soldados e
oficiais.
O
Comité Central considera ao mesmo tempo as tarefas dos militares
comunistas tendo em vista a multiplicidade dos seus deveres como
revolucionários.Os militares comunistas devem
trabalhar para estimularem e organizarem as deserções.
Mas
eles próprios não devem desertar senão quando tenham de
acompanhar uma deserção colectiva ou corram iminente perigo de ser
presos em resultado da sua acção revolucionária.
2.O
Comité Central considera que as numerosas deserções de membros do
Partido, embora integradas no protesto e na resistência contra a
guerra, não têm sido favoráveis ao desenvolvimento e organização
do movimento revolucionário. Se todos os elermentos revolucionários
abandonassem as forças armadas, estas converter-se-iam num
instrumento dócil e mais eficiente da política fascista. Se muitos
elementos revolucionários que desertaram das forças armadas aí
tivessem permanecido, poder-se-ia hoje contar com uma mais forte
organização militar revolucionária.
Os
militares comunistas devem continuar corajosamente o seu trabalho
revolucionário nas forças armadas, tanto
em Portugal como nas colónias, esclarecendo os seus companheiros,
organizando os militares mais decididos e combativos, estimulando e
organizando deserções e outras formas de acção protesto
colectivos contra a guerra colonial, desde a resistência passiva até
à sabotagem
Esse
trabalho, que exige grande coragem e firmeza,é indispensável para
enfraquecer as bases da ditadura fascista e colonialista. Os
interesses do povo português e dos povos das colónias portuguesas
exigem que esse trabalho seja realizado. O Comité Central confia em
que os membros do Partido empregarão os seus melhores esforços para
o realizar.
Junho
de 1967
O
Comité Central do PCP
no Avante! de Setembro de 1967