os dias 25 e 26 de Abril de 1974
Existem muitos testemunhos sobre os dois tensos e agitados dias que viveram os presos políticos em Caxias nos dias 25 e 26 de Abril de 1974 , sendo que eu próprio alguma coisa terei escrito sobre isso na falecida e desaparecida primeira série de «o tempo das cerejas». Agora, dada a publicação de um livro «Os Últimos Presos do Estado Novo» que ainda não li, da autoria de Joana Pereira Bastos, quero também deixar o meu testemunho, começando por sublinhar que não pode espantar que haja diferentes versões até porque os presos, convém não esquecer, estavam encerrados em celas e portanto sem beneficiarem de uma comunicação geral.
Na explicação de diferentes das versões (todas exactas na vivência individual de cada um) a meu ver também se deve considerar que enquanto numa das alas estavam os presos políticos resultantes de detenções selectivas, em processo de julgamento ou já condenados a aguardar transferência para Peniche, já na outra ala (a minha) para além das mulheres em cumprimento de pena, estavam sobretudo dezenas de democratas presos acidentalmente em 6 de Abril e os membros do sector intelectual do PCP presos em 18 de Abril. Acontece que enquanto na primeira ala que referi vigorava a rígida e normal «disciplina» daquela prisão, já na segunda, onde eu me encontrava, desde que lá chegámos que reinava uma considerável indisciplina para a qual nunca consegui encontrar uma explicação totalmente plausível, a não ser que a direcção da cadeia, a PIDE e os guardas entendiam que podiam ser mais liberais com uma data de gente que tinha sido presa acidentalmente e que, em princípio, acabaria por ter de ser libertada. De referir que, para além de diálogos muito agrestes dos presos com os guardas, essa indisciplina teve a sua maior expressão no descaramento e impunidade com que os presos que estavam virados para a o morro da parte de trás, gritavam e falavam uns para os outros.
Na explicação de diferentes das versões (todas exactas na vivência individual de cada um) a meu ver também se deve considerar que enquanto numa das alas estavam os presos políticos resultantes de detenções selectivas, em processo de julgamento ou já condenados a aguardar transferência para Peniche, já na outra ala (a minha) para além das mulheres em cumprimento de pena, estavam sobretudo dezenas de democratas presos acidentalmente em 6 de Abril e os membros do sector intelectual do PCP presos em 18 de Abril. Acontece que enquanto na primeira ala que referi vigorava a rígida e normal «disciplina» daquela prisão, já na segunda, onde eu me encontrava, desde que lá chegámos que reinava uma considerável indisciplina para a qual nunca consegui encontrar uma explicação totalmente plausível, a não ser que a direcção da cadeia, a PIDE e os guardas entendiam que podiam ser mais liberais com uma data de gente que tinha sido presa acidentalmente e que, em princípio, acabaria por ter de ser libertada. De referir que, para além de diálogos muito agrestes dos presos com os guardas, essa indisciplina teve a sua maior expressão no descaramento e impunidade com que os presos que estavam virados para a o morro da parte de trás, gritavam e falavam uns para os outros.
No que me toca, e ao João Pedro, estudante de Agronomia, que compartilhava a cela comigo, no dia 25 de Abril o primeiro elemento estranho, logo de manhã, foi o facto de não termos sido chamados para o "recreio"(1 hora no terraço). Então, o João Pedro deu uns valentes murros na porta e chamou o «funcionário» (era assim que se chamava ao guarda mais responsável) e este lá balbuciou, em estado de manifesto nervosismo e perturbação que bem registámos, que naquele dia não havia recreio e pronto.
O segundo elemento que nos fez desconfiar que algo de anormal se estaria a passar foi quando vimos a patrulha da GNR instalada no morro mudar de equipamento passando a usar capacete e dupla cartucheira.
Para mim e para o João Pedro, para além das conversas que iamos tendo com os outros presos, creio que o mais relevante foi sobretudo que à noite ouvimos uns insistentes ruídos metálicos por cima da cela e suspeitámos que podiam estar a ser instaladas metralhadoras no terraço, o que nos deixou muito apreensivos. Mais tarde, o outro elemento foi a comunicação feita pelo José Tengarrinha de que tinha ouvido por uma mensagem de claxon de automóvel (feita, viemos depois a saber, pelo Carlos Carvalhas e por outro economista, o Pedro Ferreira) da qual percebera apenas uma parte que falava de «queda do governo».
Num seu testemunho, José Tengarrinha recorda e bem que nem valia a pena barricar a entrada das celas porque as portas abriam para fora mas eu e o João Pedro barricámo-nos, já não sei se com o beliche duplo, num óbvio esquecimento de para onde abria a porta, se com o armário existente na cela.
Para nós e creio que para os outros presos a verdadeira angústia foi essa noite passada em claro, à espera do pior. Na apresentação do livro de Joana Pereira Bastos afirma-se «os prisioneiros enfrentaram horas a fio» a «incerteza» sobre se seria «um golpe da esquerda ou, tal como acontecera no Chile, da direita mais radical? ».
No que me diz respeito, quero esclarecer que essa noite foi passada com o medo de violências ou retaliações por parte da PIDE mas sem que isso significasse que já sabia, sem margem para dúvida, que tinha havido um golpe. Para mim e para o João Pedro, a questão real evocada pela autora do livro não durou horas, pela simples razão de que só durou quando talvez pelas 7 da manhã de 26 (a tomada tão tardia de Caixias foi talvez a grande falha na execução do plano da operação militar) vimos dois fuzileiros junto à janela da nossa cela e falámos com eles e da suas palavras intuimos que não parecia ser um golpe de Kaulza de Arriaga. Neste nosso juízo também pesava o facto, eventualmente excessivamente confiante, de não estarmos a ver os fuzileiros a alinharem num golpe dos «ultras». É claro que escusado será dizer que tudo ficou esclarecido algum tempo depois quando compareceu um oficial da marinha.
Depois, a história é amplamente conhecida: foi a saída para o páteo de todos os presos e o seu posterior regresso às alas mas com respeito da exigência dos presos de que houvesse livre circulação dentro delas, as conversas através de uma porta com membros da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, a exigência da libertação de todos os presos sem excepção e, ponto importante, naquele jogo de forças, a comunicação que fizémos de que, se não se operasse a rápida libertação de todos os presos, estes se passariam a considerar «presos do movimento militar».
A este respeito, e como sinal de que até naquelas situações as cabeças fervilham, lembro-me de, quanto às resistências da Junta em libertar presos que tivessem cometido «crimes de sangue», ter dado ao saudoso Francisco Pereira de Moura um argumento que não sei se ele aproveitou. Era qualquer coisa assim: «Professor, por favor dê este exemplo aos militares: eles que imaginem que, durante a operação de ontem, tinham tido necessidade de fazer explodir um troço inicial da Ponte de Vila Franca e que disso tinha resultado a morte de dois civis tripulantes de um carro; e eles que imaginem que o seu levantamento tinha sido derrotado; e agora que digam se queriam ser julgados por «crimes políticos» ou por «crimes de sangue».
Remate final sem o qual não se perceberá muita coisa que veio a seguir: naquele dia 26 o que já ocupava mais espaço no pensamento da maioria dos presos não era a sua libertação individual mas o que era necessário fazerem quando saíssem de Caxias.
Para mim e para o João Pedro, para além das conversas que iamos tendo com os outros presos, creio que o mais relevante foi sobretudo que à noite ouvimos uns insistentes ruídos metálicos por cima da cela e suspeitámos que podiam estar a ser instaladas metralhadoras no terraço, o que nos deixou muito apreensivos. Mais tarde, o outro elemento foi a comunicação feita pelo José Tengarrinha de que tinha ouvido por uma mensagem de claxon de automóvel (feita, viemos depois a saber, pelo Carlos Carvalhas e por outro economista, o Pedro Ferreira) da qual percebera apenas uma parte que falava de «queda do governo».
Num seu testemunho, José Tengarrinha recorda e bem que nem valia a pena barricar a entrada das celas porque as portas abriam para fora mas eu e o João Pedro barricámo-nos, já não sei se com o beliche duplo, num óbvio esquecimento de para onde abria a porta, se com o armário existente na cela.
Para nós e creio que para os outros presos a verdadeira angústia foi essa noite passada em claro, à espera do pior. Na apresentação do livro de Joana Pereira Bastos afirma-se «os prisioneiros enfrentaram horas a fio» a «incerteza» sobre se seria «um golpe da esquerda ou, tal como acontecera no Chile, da direita mais radical? ».
No que me diz respeito, quero esclarecer que essa noite foi passada com o medo de violências ou retaliações por parte da PIDE mas sem que isso significasse que já sabia, sem margem para dúvida, que tinha havido um golpe. Para mim e para o João Pedro, a questão real evocada pela autora do livro não durou horas, pela simples razão de que só durou quando talvez pelas 7 da manhã de 26 (a tomada tão tardia de Caixias foi talvez a grande falha na execução do plano da operação militar) vimos dois fuzileiros junto à janela da nossa cela e falámos com eles e da suas palavras intuimos que não parecia ser um golpe de Kaulza de Arriaga. Neste nosso juízo também pesava o facto, eventualmente excessivamente confiante, de não estarmos a ver os fuzileiros a alinharem num golpe dos «ultras». É claro que escusado será dizer que tudo ficou esclarecido algum tempo depois quando compareceu um oficial da marinha.
Depois, a história é amplamente conhecida: foi a saída para o páteo de todos os presos e o seu posterior regresso às alas mas com respeito da exigência dos presos de que houvesse livre circulação dentro delas, as conversas através de uma porta com membros da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, a exigência da libertação de todos os presos sem excepção e, ponto importante, naquele jogo de forças, a comunicação que fizémos de que, se não se operasse a rápida libertação de todos os presos, estes se passariam a considerar «presos do movimento militar».
A este respeito, e como sinal de que até naquelas situações as cabeças fervilham, lembro-me de, quanto às resistências da Junta em libertar presos que tivessem cometido «crimes de sangue», ter dado ao saudoso Francisco Pereira de Moura um argumento que não sei se ele aproveitou. Era qualquer coisa assim: «Professor, por favor dê este exemplo aos militares: eles que imaginem que, durante a operação de ontem, tinham tido necessidade de fazer explodir um troço inicial da Ponte de Vila Franca e que disso tinha resultado a morte de dois civis tripulantes de um carro; e eles que imaginem que o seu levantamento tinha sido derrotado; e agora que digam se queriam ser julgados por «crimes políticos» ou por «crimes de sangue».
Remate final sem o qual não se perceberá muita coisa que veio a seguir: naquele dia 26 o que já ocupava mais espaço no pensamento da maioria dos presos não era a sua libertação individual mas o que era necessário fazerem quando saíssem de Caxias.