Ou como Daniel Campelo
foi um herói antes de tempo
Ao ler hoje o nº5 do folhetim de Rui Tavares no Público sobre as suas propostas ou ideias para uma «refundação democrática» decido nem esperar pelo 6º dedicado aos partidos pois já li o suficiente para ter uma nova confirmação de que uns têm a fama do esquematismo, da superficialidade e do dogmatismo mas outros é que têm o proveito.
Quanto ao folhetim de hoje basta-me citar, que num espírito de absoluta generalização que só por si devia envergonhar um intelectual como Rui Tavares, este afirma que (sublinhados meus) «se a democracia implica a possibilidade de cada cidadão eleger e ser eleito, a República Portuguesa é, na prática, uma meia -democracia. Todos podemos votar, de vez em quando, mas num universo de 500 pessoas que, por sua vez, foram escolhidas por apenas cinco. Todo o cidadão pode eleger, mas só uma minoria mastigada pelos aparelhos partidários e vetada pelo senhor feudal que manda no partido pode aspirar a ser eleita.».
Deixando de lado a questão sobre como é que, num momento da sua vida, Rui Tavares aceitou ser escolhido apenas por um «líder»e ainda por cima senhor feudal e deixando de lado saber se este juízo o colheu RT de por onde passou, o que eu posso testemunhar que passei 37 anos da minha vida político-partidária a não ver nada disto e antes a ver as decisões sobre candidatos (e só mais as mais relevantes) a serem decididos por órgãos colegiais centrais exercendo competências estatutárias e sempre em diálogo com as organizações distritais e com largo papel destas.
Mas isto para mim são trocos quando comparados com o que Rui Tavares escreveu no nº 4 (30/7) do folhetim, numa triste imitação do que estamos fartos de ouvir de Vasco Pulido Valente, António Barreto, Maria Filomena Mónica e outros, a saber isto : «A isto poderíamos acrescentar que os partidos impõem a disciplina de voto à revelia da Constituição, o que deveria ser uma vergonha nacional, porque significa que os deputados que têm exclusividade também não são mais livres. Se levantam ondas não estão nas próximas listas eleitorais. De forma que estamos perdidos se não conseguirmos duas coisas simples: deputados que façam aquilo para que foram eleitos em exclusividade (...) e que depois votem em total liberdade».
Sem deixar de reconhecer ser humano e politicamente compreensível que cada um adora a indisciplina de voto nas bancadas alheias mas não na sua, é sobre estes pontos de Rui Tavares que quero deixar as seguintes observações soltas e não hierarquizadas :
Levando à letra o pensamento de Rui Tavares, parece que os partidos, em vez de serem associações de mulheres e homens livres que se decidem voluntariamente associar em torno de uma identidade e de um projecto políticos, deviam ser uma espécie instrumento à disposição de candidatos a deputados para lhes permitir depois exprimirem na AR as suas idiosincracias e opiniões estritamente pessoais e votarem como na real gana lhes desse.
Ora, ao contrário do que disse Rui Tavares, o que seria uma vergonha nacional seria e é alguém candidatar-se pela lista de um partido (onde alías constam a sua designação e símbolo e não as fotos dos candidatos), ter aceite o respectivo programa eleitoral, ter beneficiado do esforço e espírito de sacrifício de milhares de militantes e simpatizantes e, depois de eleito, se borrifar em tudo isso e passar a agir e a votar liberto de quaisquer vínculos de pertença política e de solidariedade ou respeito para com os eleitores que o elegeram.
Eu sei que a memória é curta mas estas ideias de Rui Tavares no fundo representam a glorificação e reabilitação do «danielcampelismo», fenómeno que na altura foi geralmente condenado e exautorado. E pode não ser o caso de Rui Tavares, mas não me admiraria nada que se elas fossem postas em prática rapidamente se ergueria um coro contra a «balcanização» do Parlamento e as instabilidades legislativas e governativas que podiam vir atrás.
Finalmente, se por enquanto de forma velada, Rui Tavares pretende fazer a defesa de candidatos «independentes» (mais rigorosamente, de candidatos propostos por cidadãos eleitores) à AR, o que actualmente - e a meu ver bem - está legalmente vedado, então isso só seria possível com a criação dos famigerados círculos uninominais, expressão máxima do que tenho chamado «escrutínio de ladrões». E é assim porque, quer o sistema eleitoral se baseasse apenas num círculo nacional ou em círculos distritais ou nos dois, a verdade é uma lista com 12, 24 ou 50 candidatos ditos «independentes» (insisto, propostos por cidadãos eleitores) deixaria de o ser porque quando 12, 24 ou 50 candidatos se associam para se candidatarem à AR é porque tem as suficientes afinidades programáticas entre si, já não há a candidatura individual, o que há é um partido informal que não quis ter nem o trabalho nem as obrigações de ser um partido a sério.