A obsessão de governar
o poder local em família
manchete do DN ontem
No defunto «o tempo das cerejas» original, muitas vezes, e com detalhe, abordei este tema da revisão da lei eleitoral para as autarquias mas, como já passou muito tempo e a memória não pode dar para tanta coisa, parece-me justificado voltar a pôr os pontos nos is neste projecto que PSD e PS perseguem, sem sucesso, há mais de 16 anos (já no Congresso do PCP de 1996, Carlos Carvalhas, logo na intervenção de abertura, a ele - e ao de mudar o sistema eleitoral para a AR - se referia criticamente). Assim e tão abreviadamente quanto possível.
Desde logo, importa começar por lembrar que, nos 36 anos de poder local democrático, o sistema em vigor funcionou bem sendo absolutamente insignificantes os casos de instabilidade gestionária derivados da representação de vereadores da oposição nos executivos municipais ou da inexistência de uma maioria absoluta de um só partido. Não é por acaso que, ao longo de anos e anos, PS e PSD sempre esconderam uma realidade que actualmente tem a seguinte expressão; dos 308 municípios existentes só em 24 (7,1%) não existe uma maioria absoluta de um só partido.
Durante muitos anos, PS e PSD não se entenderam nesta matéria de alteração da lei eleitoral para as autarquias porque cada um fazia finca-pé nas suas próprias e distintas propostas que se caracterizavam, grosso modo, pelo seguinte: o PS, explorando uma alteração em revisão constitucional e na esperança de evitar alegações de violação da proporcionalidade na conversão de votos em mandatos, propunha e extinção da eleição para a Câmara Municipal e, a salivar com executivos monocolores estabelecia que o primeiro candidato da lista para a Assembleia Municipal seria o Presidente da Câmara, cabendo-lhe a ele escolher a vereação entre os eleitos da sua lista para a AM; já o PSD mantinha a eleição para a CM mas estabelecendo um bónus de maioria para o partido mais votado, o que sendo flagrantemente inconstitucional, assegurava ainda alguma presença na vereação de eleitos da oposição. Quando escrevi em cima que desta vez o perigo é maior é porque, em boa verdade. o PSD capitulou total e rasteiramente perante o PS, adoptando agora no essencial a proposta daquele partido.
Creio interessar conhecer as concepções de fundo em que se manifestam as divergências do PCP com o PS e o PSD nesta matéria. Entre outras, creio que a mais importante é que PS e PSD sempre conceberam e ansiaram por um poder local decalcado do sistema político nacional, ou seja em mimetismo com a AR e a formação do governo enquanto o PCP, desde os alvores da revolução de Abril, sempre rejeitou esse decalque e mimetismo e assumiu que o poder local é uma realidade e realização com especificidades próprias onde não é forçoso nem vantajoso que se repitam ou reproduzam mecanicamente as mesmas clivagens e acantonamentos que se verificam na AR e em termos de política nacional. Por isso, o PCP sempre admitiu que, em condições precisas e politicamente negociadas, pudesse haver vereadores comunistas com pelouros em câmaras de maioria de outros partidos e vereadores de outros partidos em câmaras de maioria CDU. Como breve ajuste de contas, que longe disso não tem nada de pessoal, convém lembrar que João Soares foi durante muitos anos um dos mais insistentes críticos do PCP por ter vereadores com pelouros em Sintra com maioria PSD, o que entretanto não impediu de mais tarde de vir a ser vereador do turismo com a mesma maioria PSD em Sintra. Dito isto, esclareça-se que jamais o PCP combateu estes projectos na base de um cálculo de perdas e ganhos numéricos mas, sempre e sempre, por entender vantajoso ter vereadores em Câmaras de maiorias de outros e por não se importar por ser fiscalizado por vereadores de outros partidos nas câmaras de maioria CDU. E entendamo-nos de uma vez por todas: os grandes ou importantes casos de ilegalidades, tráfico de influências, actos de corrupção, etc., em regra, não foram descobertos através das Assembleias Municipais mas sim nas vereações municipais.
Finalmente, se razões de princípio e de ordem democrática não derem para convencer o pessoal do PS e do PSD da estupidez e incorrecção que preparam, então adianto mais duas razões de outra ordem a que PS e PSD e os seus eleitos autárquicos, se tivessem um módico de juízo, deviam prestar alguma atenção :
- o primeiro é que o sistema de ser o 1º candidato da lista para a AM a ser investido como Presidente de Câmara e poder escolher ele a sua equipa seria mais um notável contributo para o reforço do presidencialismo municipal, para o caciquismo e amiguismo pessoais e colocaria os partidos ainda mais na dependência dos humores e orientações dos seus eleitos, perdendo obviamente capacidade de acompanhamento e controlo, apesar de ser o seu nome e símbolo que figura nos boletins de voto.;
- o segundo é que o sistema proposto permitirá certamente que onde tiverem a maioria absoluta, PSD e PS ainda tenham mais lugares para distribuir aos seus militantes desses concelhos; mas em todos os outros concelhos em que ou o PS ou o PSD estiverem em minoria, haverá centenas de vereadores desses partidos que, nesses concelhos, não só perderão estatuto pessoal e político como deixam de ter uma real capacidade de intervenção nos assuntos municipais. Ao menos, pensem nisso. E, se não for pedir muito, revoltem-se !