Morreu um jornalista de política internacional como já não há
Nazismo e estalinismo : um debate viciado
A resolução do Parlamento Europeu que há dez anos criou o Dia da Memória das Vítimas do Estalinismo e do Nazismo veio dar uma nova dimensão a uma polémica que se arrasta há décadas, ao apadrinhar as teses que equiparam os dois regimes como expressão do mesmo fenómeno político.
A controvérsia tem um marco fundador na publicação, em 1952, de The Origins of Totalitarism, em que Hannah Arendt identifica os regimes de Adolfo Hitler e de José Estaline como expressão acabada de uma realidade política inteiramente nova e distinta de outros tipos de despotismo ou ditadura: o “totalitarismo".Entre os elementos que identificam o fenómeno totalitário Arendt sublinha a emergência de um líder absoluto e alvo de um culto da personalidade, a propaganda em larga escala para mobilizar e doutrinar as massas, o recurso sistemático à violência, ao terror e em particular aos campos de concentração.
A obra transformou-se numa referência ética e política incontornável e estabeleceu os parâmetros do debate. O conceito de “totalitarismo” formulado por Arendt suscitou uma acesa polémica nos meios políticos, intelectuais e académicos. Arendt foi acusada de ignorar as circunstâncias históricas em que se inscreve o fenómeno totalitário e de centrar toda a sua análise nas semelhanças entre os dois regimes, ignorando ao mesmo tempo as diferenças substanciais que os distinguem.
Boa parte dos traços comuns apontados aos dois regimes corresponderá fundamentalmente aos efeitos da evolução das tecnologias do poder, da propaganda e da guerra no dealbar do século XX e à disponibilidade de novos instrumentos de mobilização e de controlo das massas e da acção das polícias secretas.Os regimes de Hitler e de Estaline conformam fenómenos políticos distintos. Surgem em contextos históricos e condições políticas, sociais e económicas totalmente distintas e obedecem a princípios filosóficos e referências ideológicas diversas — e mesmo em confronto absoluto.
O regime estalinista afirma-se no quadro de um processo revolucionário em plena consolidação e que desenvolve estruturas burocráticas e repressivas manipuladas por Estaline numa estratégia pessoal de poder e em nome de um projecto de transformação económica e social brutal e impiedoso. A liderança de Hitler é um fenómeno de poder absoluto em nome de um projecto de expansão e de afirmação da superioridade de uma raça.
Estaline dirige um projecto de transformação radical da sociedade que pretende ter um carácter universal e apela aos trabalhadores de todo o mundo. O nazismo mobiliza uma nação e uma raça, a Herrenvolk, destinada pela sua supremacia a impor a sua vontade a todas as outras.
A liderança de Estaline inscreve-se na estrutura burocrático-partidária e ideológica saída da revolução bolchevique. Hitler é um chefe carismático, um Führer, criador e líder absoluto do ideário e dos objectivos do nazismo.
O recurso ao terror e à violência assumem lógicas e objectivos diferentes nos dois regimes. As detenções, execuções e depurações em massa decretadas por Estaline destinavam-se a eliminar adversários políticos, a manter a disciplina pelo terror e a arregimentar mão-de-obra forçada nos campos do Gulag, e atingiram todos os sectores da sociedade soviética, dos mais altos quadros do partido aos camponeses.
No regime hitleriano a violência servia a repressão política — que atingiu antes de mais os comunistas alemães —, a purga da sociedade de elementos “associais” e, acima de tudo, os objectivos raciais e expansionistas — da perseguição aos judeus ao projecto de exterminar as populações eslavas do Leste da Europa de modo a desbravar terreno para a colonização alemã.
Estaline argumentava que os julgamentos e as condenações respeitavam sempre uma estrita legalidade e que o regime obedecia fielmente às práticas da “democracia soviética” e proclamava-se um defensor da paz. Hitler assumia abertamente a repressão e a violência, considerava a guerra um instrumento justificado pelos superiores interesses do Reich e defendia a legitimidade da expansão como meio de conquistar um Lebensraum, um “espaço vital” para a nação alemã.
A data escolhida pelo Parlamento Europeu em memória das vítimas do nazismo e do estalinismo é o dia 23 de Agosto, aniversário da assinatura do Pacto Molotov-Ribbentropp, considerando que o tratado germano-soviético de não-agressão de 1939 “abriu caminho à eclosão da II Guerra Mundial” e aponta o famoso “protocolo secreto” como prova de uma alegada cumplicidade geopolítica entre os dois regimes.
O Pacto Molotov-Ribbentrop surge no contexto de uma densa trama de cálculos, manobras de diversão e jogos de sombras — ainda com muitos pontos obscuros, aliás — em que todas as partes se envolveram nesse período dramático entre a Primavera de 1938 e o ataque alemão à Polónia, em Setembro de 1939.
O acordo celebrado em Munique a 30 de Setembro de 1938 por britânicos, franceses e germânicos (mas com a exclusão dos soviéticos) — e que abriu caminho a Hitler para a anexação da Checoslováquia no final de 1938 —, as negociações tripartidas entre a França, a Inglaterra e a URSS, entre Março e Julho de 1939, para tentar constituir uma frente comum face a Hitler, e os contactos secretos da diplomacia alemã com Moscovo ocorrem num clima de profunda desconfiança de todas as partes, e num momento em que se adivinhava cada vez mais inevitável uma guerra com a Alemanha nazi.
Nessa perspectiva, a política de appeasement seguida pela França e pela Inglaterra, o acordo de Munique, ou, já em 1936, o fechar de olhos à brutal intervenção da Itália fascista e da Alemanha nazi ao lado de Franco contra a II República espanhola poderão ter encorajado tanto o avanço de Hitler como o Pacto Molotov-Ribbentrop.
A polémica do nazismo e do estalinismo está viciada desde o início por jogos políticos e ideológicos, manobras propagandísticas, processos de manipulação da memória e ensaios de revisão da História.
A posição assumida pelo Parlamento Europeu gerou fortes reacções. Entre os mais críticos alerta-se que tentativas de equiparação dos regimes de Hitler e de Estaline correspondem de facto a uma banalização — ou mesmo reabilitação — do nazismo, que se vê afinal transformado tão só numa espécie de “mal do século”.
Sublinha-se, por outro lado, o facto de o texto da resolução do Parlamento Europeu utilizar indiscriminadamente os termos “estalinismo” e “comunismo”, um lapsus linguae que contamina, de resto, todo o debate. Outros observam ainda que os deputados de Estrasburgo nunca se mostraram particularmente incomodados com a herança ustasa assumida pela Croácia de Tudjman ou pelo peso da extrema-direita nas cúpulas políticas e militares da Ucrânia.
A Declaração sobre a Consciência Europeia e o Comunismo, emitida em Praga em 2008, é ainda mais categórica na equiparação entre nazismo e comunismo. A Declaração de Praga ilustra a particular sensibilidade da questão no centro e no Leste da Europa, onde se inscreve na batalha das memórias, dos arquivos e dos ajustes de contas com o passado e — denunciam alguns — tem sido amplamente manipulada para fazer tentativas de reabilitação de antigos colaboracionistas com os nazis.
Face ao crescendo da tensão entre a Rússia e o Ocidente, o duelo das memórias inflama-se de novo. O Parlamento de Estrasburgo insiste nas responsabilidades conjuntas de Hitler e Estaline e acusa o governo e as elites políticas da Rússia de tentar “branquear os crimes do regime totalitário soviético”, provocando reacções indignadas em Moscovo. Putin responde reforçando o aparato das celebrações do Dia da Vitória e recordando o papel decisivo e o gigantesco preço humano pago pela União Soviética na derrota da Alemanha nazi.
Ao conferir chancela institucional a uma equiparação mais do que questionável, o Parlamento Europeu assume acima de tudo uma posição política. Não hesita para isso em recorrer a atropelos históricos e políticos grosseiros, e que jogam mal com o objectivo proclamado de mobilizar a “memória comum” em prol da “resiliência contra as ameaças modernas à democracia”. Sobretudo no momento em que se assiste ao recrudescer da extrema-direita em vários países europeus. E em que o desenvolvimento de tecnologias e estratégias políticas e económicas de controlo do cidadão impõe uma reflexão renovada sobre a ameaça totalitária…
Tal como a partida ou diria mais, a libertação, de Dinis de Almeida, estou triste com esta notícia. Digo «liberto» e não «morto», pois para mim aqueles que são a favor da paz e não da guerra, não morrem.
ResponderEliminarRecordo o jornalista sério e lúcido que foi, aquando do conflito da Jugoslávia. O único homem que foi capaz de travar o sorriso cínico de Nuno Rogeiro, num debate a dois sobre o mesmo tema (no canal 2 - jornal da noite). Aos disparates ditos por Nuno Rogeiro, Carlos Santos Pereira terá dito ao moderador algo como «não estamos aqui a brincar» devolvendo a seriedade ao debate.
uma notícia muito triste. Ainda faz falta para os combates pela verdade em que todos andamos envolvidos
ResponderEliminarAramos